Algo está a mudar em Portugal quando mais de 385.000 cidadãos assinam uma petição contra uma norma do Orçamento de Estado e dezenas de milhar não apenas assinam, mas escrevem comentários sobre o assunto. Isto é completamente inédito em Portugal e é, a meu ver, um bom sinal. Significa que os portugueses não estão adormecidos. Esta iniciativa terá consequências económicas e políticas não despiciendas e merece ser escrutinada.

Não é o número de peticionários que fornece a razão a quem assina, mas acontece que, como demonstrarei neste artigo, têm razão na crítica os peticionários sobre a injustiça de aumentar significativa e rapidamente o Imposto Único de Circulação (IUC)  para veículos anteriores a julho de 2007 ao passar a considerar na tributação destes veículos não apenas a componente cilindrada, mas o seu potencial de emissões, como já acontece nos carros posteriores a essa data. Há também argumentos económicos que justificam a sua proposta de passar a tributar os veículos exclusivamente elétricos em sede de IUC.

Comecemos pelo mais simples. Porque é que existe o IUC? Essencialmente para três coisas. Primeiro, compensar os municípios e o Estado (e as regiões autónomas), que partilham a receita, pelos encargos com a manutenção da infraestrutura viária. Segundo, onerar os contribuintes em função dos custos ambientais que provocam e deste modo incentivá-los a escolhas mais amigas do ambiente. Ou seja, aparentemente o IUC aplica respetivamente o princípio do utilizador-pagador e o princípio do poluidor-pagador. Uma terceira razão, obviamente não escrita, é dar mais receita às entidades públicas acima referidas. Na realidade o IUC não cumpre bem o primeiro objetivo, nada tem a ver com o segundo e, em relação à receita fiscal, paradoxalmente quanto mais eficaz for a alterar comportamentos, menos receitas consegue gerar. À luz da lei atual se todos os veículos forem totalmente elétricos deixaria de haver receita não apenas de IUC, mas também de imposto sobre produtos petrolíferos (ISP).

Não parece difícil compreender a injustiça associada a tributar mais os veículos antigos (anteriores a 2007) de pessoas que têm poucos rendimentos, curiosamente isentando aquelas que têm maiores rendimentos e que têm capacidade para manter veículos históricos com mais de 30 anos e que façam menos de 500km por ano. Aqueles que não têm capacidade de adquirir um veículo mais recente, seja ou não elétrico, são os grandes penalizados por esta uniformização dos critérios de determinação do IUC de carros pré e pós 2007. São eles a esmagadora maioria dos signatários da petição.

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Porém, poderá argumentar-se que este imposto não existe por razões de justiça social, mas pelas razões de eficiência acima referidas e que é sabido que os impostos especiais sobre o consumo são regressivos, isto é incidem mais sobre os que menos têm. É verdade, mas para isso é necessário medidas de mitigação do impacto negativo na equidade, que a nosso ver não são satisfeitas com o subsídio para abate desses veículos de três mil euros.

Mas será que o IUC como está desenhado cumpre os critérios de eficiência a que se propõe? Na componente de uso da rede viária, qualquer viatura, independentemente da fonte de energia, a utiliza, sendo a melhor variável para a medir o peso do veículo. Não tenho objeção a que se continue a usar a cilindrada para tornar o imposto um pouco mais equitativo. Porém, o ponto a realçar aqui é que também os veículos elétricos impõem um custo viário como os restantes. Na componente ambiental, não há dúvida nenhuma que as emissões associadas a gasolina e gasóleo são muito mais elevadas do que as associadas à eletricidade. Mas temos aqui dois problemas. Primeiro não se está em sede de IUC a tributar nem as emissões nem o consumo de combustível, mas sim a classe de emissões a que pertence o veículo. Se ele estiver parado numa garagem, como muitos carros antigos, emite zero emissões. Segundo, a energia elétrica não é uma energia limpa, mas é produzida com um mix energético em que o peso principal é a combustão de gás natural que emite CO2 (para uma das operadoras nacionais tem um peso  de 46,6%). Resumindo, uma análise da eficiência à luz dos dois fundamentos legais do IUC leva a concluir que os carros elétricos, deveriam ser menos tributados na componente ambiental, que os a gasolina ou gasóleo, mas mesmo assim ser tributados em função das suas emissões “a montante”.

Não esquecer que o IUC é apenas um dos vários impostos que incide sobre a aquisição e uso do automóvel. Na aquisição (imposto sobre veículos) os veículos elétricos já são, e bem, discriminados positivamente. No que toca às emissões, o imposto sobre produtos petrolíferos (ISP) e sobretudo a taxa de carbono, são uma muito melhor proxy do valor das emissões do que a classe de emissões do veículo. Aqui só paga quem circula com a viatura e quem polui diretamente (excluído os elétricos que poluem menos e “indiretamente”).  Já agora a razão porque este imposto existe é, em parte, da mesma natureza que o IUC, só que o ISP é um instrumento mais direcionado ao objetivo ambiental, do que o IUC.

É verdade que não podemos ser, como diz o primeiro-ministro, ambientalistas só à segunda, terça e quarta, e que a transição energética deve ser um desígnio nacional. Mais, a necessária descarbonização da economia e dos transportes só se faz com a ajuda da fiscalidade. Ainda este ano se regulamentou a taxa de carbono para os consumidores de viagens aéreas, embora haja muitas outras medidas não fiscais que contribuem para a alteração de comportamentos.

Contudo, há propostas fiscais melhores do que a que está inscrita no OE2024 quer na ótica ambientalista quer da justiça social. A alteração ao IUC está agora nas mãos dos deputados. São eles que têm de saber ouvir o povo, que nunca falou tão alto, e fazer propostas de alteração mais eficientes e mais justas.