Não sei se tenho esqueletos no armário mas, sem dúvida, tenho fantasmas na cama. Deito-me com a Ana Rute apenas mas no meio da noite, nos meus sonhos, aparecem outras pessoas sem que as autorize. Por vezes, roubam-me a paz e quando acordo pela manhã é como se já tivesse vivido um dia inteiro antes de me levantar.

Estes intrusos são fantasmas na medida em que, não tendo estado com eles fisicamente, eles estiveram comigo. Populam os meus sonhos como se essa terra complicada, que fica entre o facto e a fantasia, fosse mais deles do que minha. Quando sonho, dou por mim a assistir à minha vida em vez de vivê-la. E isso, ironicamente, muda-a. Os fantasmas que nos entram na cama fazem-nos coisas factualmente. Os nossos fantasmas, de certa maneira, vivem-nos a nós.

Há fantasmas que não convidámos mas que em último grau nos honram quando chegam. Isso acontece com o meu avô Joaquim e a minha tia Rute. Quando eles vêm custa-me, ao acordar, lembrar que afinal já não os posso ter comigo — resta sempre o consolo de eles me terem habitado um pouco durante a noite. Por outro lado, há fantasmas que nos perturbam porque trazem contas por ajustar. Fazem com que ponderemos em vidas que talvez devessem ser as nossas mas que, por alguma razão, não conseguimos tê-las. Podem ter sido amizades interrompidas que ocasionalmente dão mesmo em ódios por assumir. Sendo que, para tornar tudo mais complicado, estes fantasmas são pessoas que continuam vivas mas sem se cruzar connosco fora do sono.

É contado na Bíblia um dos registos mais impressionantes acerca de como os fantasmas nos entram, num primeiro momento, pela cama, mas depois avançam descaradamente pela existência toda a dentro. O Rei Herodes Antipas tinha sido o responsável pela execução de João Baptista, que os evangelhos contam com mais detalhe nas cenas famosas da dança da filha de Herodias, com quem Herodes estava ilegitimamente envolvido, e da decapitação do profeta eremita. Acontece que Herodes até gostava de João Baptista e, só contrafeito, acabou por provocar-lhe a morte, apanhado naquele tipo de promessas parvas que fazemos quando já estamos entornados. A fanfarronice deu em fantasma porque, morto o Baptista, Herodes via-o em todo o lado. Ora, à medida que a fama de Jesus crescia e os judeus elaboravam opiniões e teorias acerca dele, a do Rei arrependido era clara: Jesus é João regressado do túmulo para me atormentar. Cristo vivia em carne e osso mas Herodes tinha-o em fantasma.

Nos cenários mais extremos, os fantasmas podem ir da cama para qualquer lugar na nossa vida, chegando até ao ponto de acotovelarem os vivos e tomarem-lhes o lugar. Quantas vezes as pessoas reais com que lidamos não funcionam apenas como embalagens dos espíritos dos que já não estão cá? Vivemos assombrados a tomar quem está por quem não está, e o que acontece nos sono apodera-se das horas acordadas. Atingimos a pior versão possível da vida dos nossos sonhos.

Vou aceitando o facto de não conseguir expulsar os fantasmas da minha cama. A minha oração ao dormir nem é tanto a de me ver livre deles; peço antes a Deus que, se é para ser assombrado, não dependa apenas dos sustos no sono. Pessoas sem fantasmas podem ser as que mais temem o escuro em pleno dia. Mas ainda que andemos pelo vale de todas as sombras, a luz vem em forma de gente. Entrando onde não os autorizei, os fantasmas na minha cama levantam-me para tocar mais em quem anda comigo em carne e osso.

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