A liberdade é essa capacidade de fazer um início (…) de começar algo completamente novo”. (Hannah Arendt)

No meio das chamas de um conflito que parece não ter fim, somos, mais uma vez, desafiados a refletir sobre a postura ética e moral que as nossas sociedades e os seus protagonistas assumem face aos atos bárbaros que testemunhámos no último 7 de Outubro. Para muitos, os atentados aleatórios e bárbaros a pessoas que pacificamente viviam as suas vidas, nas suas casas ou kibutzes, em festivais de música, muitos ainda na idade da inocência, continuam a ter de ser “contextualizados” ou igualados em perspetiva histórica. Em vez de se assumir, sem reservas, que estamos perante um choque civilizacional entre aqueles que se mantêm ancorados numa visão pré-moderna do mundo e aqueles que, apesar das adversidades e fragilidades, tentam avançar para um futuro mais justo e plural.

Lamentavelmente, nem todos conseguem ver a distinção evidente entre uma democracia estabelecida que, mesmo com as suas falhas, opera sob o império da lei, e a brutalidade de um grupo que ataca civis indiscriminadamente. Israel é, hoje, uma sociedade plural, com todas as forças e fragilidades de uma democracia liberal. Em Israel vivem milhões de árabes, que inclusive estão organizados politicamente, e que têm os seus direitos assegurados. Uma larga maioria da população israelita está hoje preparada para aceitar um Estado Palestiniano, desde que o compromisso e governação dos seus vizinhos renegue ao que é o desígnio de grupos como o Hamas, que aspiram à destruição do Estado de Israel – com todas as consequências que isso implica em termos de genocídio do seu povo. É preocupante como em tantos setores das sociedades ocidentais ainda há gente, por cegueira ideológica, a negar o óbvio e defender que o Hamas é um “movimento social progressista”, mesmo quando esse grupo comete atrocidades que contradizem os princípios mais básicos dos direitos humanos.

Não dá para ignorar que a causa palestina e a sua versão mais violenta nascem de uma estranha simbiose entre movimentos de extrema-esquerda e grupos terroristas, ideologicamente justificados e glorificados por pensadores como Negri, Fanon ou Sartre. A adulação que grupos como as Brigadas Vermelhas italianas, o IRA, a RAF ou a ETA receberam de certas esquerdas europeias permanece, hoje, projetada nos ideais revolucionários de grupos como o Hamas. O que une os saudosistas das revoluções vermelhas e os terroristas islâmicos? O mesmo desprezo pelo modelo de civilização em que vivemos, fundado no pluralismo, na recusa da violência, e na liberdade.

O apoio das esquerdas ocidentais a grupos como o Hamas não são manifestações de solidariedade com o povo palestiniano, mas sim posturas instrumentais que apenas buscam desestabilizar e rejeitar o modelo social, plural e democrático que tem sido a pedra angular das sociedades ocidentais modernas.

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As esquerdas estão sempre a içar as bandeiras da luta contra a opressão, gabam-se de estarem ao lado dos oprimidos. No entanto, nas suas ações concretas, pouco fazem para libertar os oprimidos das suas correntes. Em vez de promoverem a emancipação, de trabalharem as soluções que eliminam as dependências, os movimentos de esquerda parecem contentar-se com uma narrativa de vitimização, refugiando-se em determinismos históricos que lhes são convenientes para nada fazerem para libertar quem sofre.

Israel, ao responder à ofensiva do Hamas, até pode estar a atuar indevidamente como um agente de represália, devendo ser por isso criticado, mas não podemos ignorar que, no final, Israel está a defender a sua sobrevivência no quadro de uma ordem democrática que está constantemente sob ameaça. A tentativa de colocar ambos os lados no mesmo patamar moral é não só intelectualmente vazia, mas também perigosamente enganadora.

A viagem rumo à modernidade, como defendi na minha crónica anterior, não é apenas um caminho de progresso tecnológico ou económico, mas também uma busca pela afirmação dos direitos fundamentais e pela construção de uma sociedade plural, onde todos têm espaço. Nesse contexto, é imperativo rejeitar qualquer tentativa de validar ou legitimar grupos que, através da violência e da opressão, buscam retroceder conquistas civilizacionais importantes.

Sou dos que defende que a História é uma tensão constante entre ideias e ações, entre o mundo das teorias e a crua realidade dos conflitos humanos. Certamente, o pensamento é uma força poderosa que deve moldar as nossas ações, mas na hora de avaliar conflitos há que saber reconhecer a complexidade destas questões e abordá-las com discernimento e empatia. Mas mesmo perante a complexidade o nosso compromisso deve ser com os valores que têm sustentado as democracias liberais e que representam o melhor do espírito humano. A tensão entre as sociedades democráticas e plurais e os inimigos das liberdades é antiga e tem raízes profundas na história do Ocidente.

Desde o século XVIII, muitas gerações deram a vida pela defesa dos valores de liberdade, do pluralismo, da igualdade e do laicismo. Este legado foi forjado no meio de grandes desafios e tem sido passado de geração em geração. Esta herança, tão duramente conquistada, está a ser desbaratada pelo vírus das esquerdas, não honrando o sacrifício de todos os que deram a vida pela liberdade. Esquecer ou menosprezar esse legado seria uma grande injustiça. Quando se apoiam grupos extremistas que querem impor o regresso às trevas, que procuram desestabilizar e rejeitar o modelo de sociedade em que vivemos, está-se, de facto, a desconsiderar a memória e o esforço dos milhões de pessoas que morreram pela liberdade.

Não falta quem acredite que a Humanidade nasceu para viver em tirania, e que o período excecional vivido nas últimas décadas mais não é do que um acaso do destino. Como Arendt, rejeito a ideia de que o futuro está predeterminado, devendo cada um de nós assumir que há no Homem uma enorme capacidade de iniciar, de criar novos começos. A liberdade de Arendt não é apenas uma cómoda defesa da ausência de coação ou da capacidade que cada um de nós deve ter de escolher entre diferentes opções. Arent sublinhava o caráter ativo da liberdade e que a sua essência intrínseca reside na ação humana. O novo, o imprevisto, e a capacidade de agir serão também pedras angulares da liberdade genuína.

A nossa “insatisfação com o mundo” e “o desgosto com o estado das coisas” não nos isentam da “responsabilidade pelo mundo”. Apesar da barbárie que persiste no mundo moderno, que não deve ser nem ignorada nem desculpada, quem defende a liberdade deve, no plano político e na vida pública, continuar a procurar formas de conseguir “sobreviver neste mundo”. É necessário que sejamos capazes de nos reconciliar com um mundo que nos patrocina constantemente cenários do horror, mas que é ao mesmo tempo o único espaço onde podemos estar, de onde não é possível fugir, e onde temos de encontrar dignidade para a nossa existência. Cada um de nós tem a responsabilidade de lutar pelo nosso espaço e torná-lo frequentável para todos, sem conflitos e com espaço para a pluralidade. Sem isso, não há liberdade.

Se a França e a Alemanha foram capazes de pacificar as suas relações e esquecer séculos de lutas, de atrocidades e de mortos, porque aderiram à modernidade e recusaram a tirania, então esta não será a receita para o conflito entre Israel e a Palestina? À semelhança do que aconteceu na Europa, a solução não está em repisar as contingências históricas, mas perceber, hoje, quem é capaz de assumir estruturas políticas que aceitam o outro em liberdade e sem perseguições. Em 2023, Israel está preparada para viver em paz com os seus vizinhos, desde que a Palestina e as forças que instigam o Hamas sejam capazes de abandonar a visão distorcida e violenta da palavra “Jihad”. “It takes two to tango”.