“Nunca mais,” prometeu o fadista, “vou a Cacilhas / Mais o Chico Maravilhas / Comer uma caldeirada.” A promessa conclui uma descrição de incidentes ocorridos da última vez que lá estivera. Percebe-se: todos na vida já prometemos que não voltaríamos a fazer certas coisas. Quando isso depende de nós basta um bocadinho de força de vontade, constância e sorte, e a última vez é mesmo a última vez. É relativamente fácil não voltar a Cacilhas.

Mais difícil é o caso do conhecido bolero em que o cantor tenta convencer quem o ouve a beijá-lo, beijá-lo muito, “como se fosse esta noite a última vez.” A proposta tem boa reputação; o seu atractivo principal vem de o cantor recomendar que façamos as coisas pela última vez com grande intensidade, que as façamos “muito.” Suscita no entanto um problema prévio: apesar de geralmente sabermos que fizemos uma coisa pela primeira vez, nunca nos é evidente quando a estamos a fazer pela última. Só mais tarde, e às vezes tarde demais, é que percebemos que aquela vez era afinal a última.

Por via das dúvidas o cantor do bolero parece defender que em matéria de beijos façamos sempre tudo com grande intensidade. O processo é porém cansativo e incerto. Corremos o risco de nos enganar nas despedidas; de sufocar com beijos pessoas, animais ou coisas que vamos voltar a ver dali a dois dias. Pior ainda, este tom de grande intensidade é o de quem imagina que as coisas desaparecem quando se veste luto por elas; é o tom daqueles que confundem o que lhes acontece com o que resolvem fazer; daqueles para quem a morte de uma pessoa é igual a decidir não voltar a vê-la, e para quem tudo na vida é como decidir não voltar a pôr os pés em Cacilhas.

A recomendação do cantor levanta também problemas técnicos. Mesmo que soubéssemos que não voltaríamos a beber café, a entrar numa certa casa, ou a ver uma certa pessoa, não saberíamos como bebê-lo “muito”, entrar “muito” nessa casa, ou como ver “muito” essa pessoa pela última vez. Como se bebe “muito” uma chávena de café? Também não se pode ver “muito” uma pessoa, ou entrar “muito” numa casa.

Quando a nossa ideia de café é beber café, a nossa despedida do café só lhe fará justiça se fizermos o que sempre fizemos, isto é, se o bebermos nas quantidades e com a importância que sempre teve para nós. A melhor maneira de fazer as coisas pela última vez é portanto fazê-las como as fizemos pela penúltima. Beber um café como sempre bebemos, e entrar numa casa onde não vamos voltar a entrar como sempre entrámos; e mesmo despedirmo-nos de alguém que achamos que não vamos voltar a ver usando o nosso modo normal de despedida.

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