Em 43 a.C., quando trouxeram a cabeça de Cícero a Marco António e à mulher, Fúlvia, conta-se que ela, enfurecida por todas as piadas maldosas (e muito giras) que Cícero contara dela ao longo dos anos, tirou o seu gancho e usou-o para furar a língua (já roxa, presume-se) do orador. Donde se conclui que, no meio daquilo que aconteceu nos óscares, a sorte de Chris Rock é Jada Pinkett Smith ser careca e por isso não usar ganchos.

Agora que me diferenciei das outras análises com uma referência à Antiguidade Clássica, mostrando que não sou um bronco qualquer, mas sim um bronco com acesso à Wikipédia, posso debruçar-me sobre o caso. Uma semana depois de ter dado uma bofetada em Chris Rock, Will Smith começa a sentir as consequências: a indústria cinematográfica reagiu e está a tirar-lhe trabalho.

O que é estranho. Lendo tudo o que se escreveu sobre aquele momento nos Óscares, estava à espera que aumentasse a cotação de Will Smith enquanto actor. Afinal, num espaço de 30 segundos conseguiu representar convincentemente: a) maridos machistas; b) defensores da honra das mulheres negras; c) fantoches das esposas; d) negros com infâncias problemáticas, que reagem à maneira do bairro; e) homens que sofrem de doença mental por causa de traumas de infância; f) milionários que se julgam donos daquilo tudo. Will Smith desempenhou todos estes papéis.

É possível que me tenha escapado algum grupo, mas estes estavam lá, nas justificações para o comportamento de Will Smith. Pelos vistos, para muita gente, aquela bofetada explica-se pela pertença de Smith a um ou vários grupos cujos elementos, naquelas condições, agem sempre daquela forma. Não me lembro de nenhuma análise que tenha concluído que Will Smith deu uma chapada a Chris Rock porque é um idiota. Que é, para ser preciso, o que de facto aconteceu. Will Smith é um idiota e fez aquilo que se espera de um idiota. Não foi por ser homem, negro ou milionário. Foi por ser um idiota que, por coincidência, é homem, negro e milionário. Ao usarmos uma identidade grupal para compreender a agressão, não o deixando ser apenas um mero idiota, estamos a chamar idiotas a todos os outros elementos do grupo. Dividimos a idiotice por todos. Desresponsabilizamos Smith e condenamos por associação uma série de homens, uma série de negros e uma série de milionários que não reagem a piadas com agressões e não têm culpa nenhuma se Will Smith o faz. Por mais que o sexo, a cor da pele, o dinheiro, o sítio onde crescemos, o amor que temos pela nossa família, influencie as nossas motivações, agir ou não agir só depende de sermos ou não idiotas. Will Smith é-o. E nem precisa fazer de conta.

No discurso que fez depois de receber o seu óscar, Will Smith diz que está esmagado pela missão que Deus lhe confiou neste mundo. Nesse sentido, percebe-se melhor o que se passou naquela cerimónia. Não foi a primeira vez que alguém que se acha convocado por Deus perde as estribeiras com uma piada de carecas. Por volta do séc. IX a.C., algures na Judeia, o profeta Eliseu encontrou o seu Chris Rock. Está na Bíblia, em 2 Reis 2:23-24: “Dali subiu [Eliseu] para Betel. Enquanto caminhava, saíram da cidade alguns rapazitos, que se puseram a zombar dele, dizendo: “Sobe, careca! Sobe, careca!” Eliseu virou-se para trás, viu-os e amaldiçoou-os em nome do Senhor. Imediatamente saíram da floresta dois ursos e despedaçaram quarenta e dois daqueles rapazes”. (Naquele tempo, o público era mais exigente). Resumindo: Will Smith é só um idiota e, se há algum grupo que o identifica, é o dos ursos.

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