É vulgar ouvir na televisão ou ler nos jornais que em Portugal não há planeamento. Lemos e ouvimos frases como: “Falta o planeamento”, “o país não sabe planear”, “não planeámos”, “o Governo não planeou”. Portanto, toda a gente sabe que não há planeamento, mas mesmo assim este continua sem ser feito. Será talvez injusto dizer – pensará o leitor – que Portugal não planeia de todo quando temos claros exemplos de projetos que o país executou com sucesso. Na minha geração, Portugal foi capaz de organizar uma exposição mundial e realizar o Euro 2004 com sucesso, com grande sucesso até – à exceção de uns estádios que não sabemos o que fazer com eles. Isso requer planeamento. Estamos tão aptos a planear determinados eventos que recentemente soubemos que o estádio do Dragão vai receber a final da liga dos Campeões.

Depois há uma outra experiência, bem diversa. A experiência com sistemas de transportes atrasados, um novo aeroporto de Lisboa para o qual ainda só não foi proposta uma localização no meio do Rio Tejo, porque de resto já andou por todos os concelhos, ora aqui, ora ali. Não sei o que pensa o leitor sobre o tema, mas a minha confiança sobre este tipo de decisões, que requerem um pacto para várias gerações, é neste momento nula. Não que não se tenha gastado dinheiro em estudos – há muito dinheiro investido em estudos – e estudos que na maioria até serão bons. Não vou colocar em causa o trabalho de tantas equipas, nacionais e estrangeiras que se têm debruçado sobre este tema. O problema é tomar boas decisões.

Planear requer pensar além de uma legislatura, requer um pacto sobre que Portugal queremos ter nas próximas décadas para fazer face à competição, cada vez mais forte, das grandes economias. Aos políticos requer-se uma visão sobre esse Portugal, um programa de objetivos que se possa traduzir em políticas concretas e um plano de investimentos. Essa conversão só pode ser atingida com diálogo permanente entre os políticos e os técnicos (independentes) das várias áreas de especialidade: engenharia, economia e gestão para nomear três das mais importantes.

E não vale a pena reinventar a roda, já sabemos praticamente tudo. Para nos tornarmos competitivos precisamos de boas infraestruturas de transportes, mão de obra qualificada, e estabilidade nas estratégias políticas e económicas para o país. Tudo o que Portugal tem tido dificuldade em concretizar.

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No que concerne aos transportes, tema de que posso falar com maior propriedade, o país tem hoje uma infraestrutura rodoviária das melhores da Europa, apenas abaixo da Holanda, sendo que Portugal tem três vezes maior área para cobrir e uma população 40% inferior. No entanto, a ferrovia, o único transporte verdadeiramente democrático e criador de oportunidades de acessibilidade para todas as populações, incluindo aquelas pessoas que não querem ou não podem conduzir (por incapacidade física ou financeira), ficou manifestamente para trás, o que num país atrasado com salários baixos é de bradar aos céus. A linha do Norte e algumas linhas suburbanas de Lisboa e do Porto são a exceção, contudo continuamos a ter de pendular, e penar, enjoadamente de Lisboa ao Porto para podermos fazer os 330 quilómetros em 2h50 – jurei para nunca mais a última vez que fui a trabalhar de Lisboa para o Porto num desses comboios de pêndulo de que a Europa se tem estado a livrar. O adicionar de uma ponte aérea entre as duas cidades talvez tenha sido o maior sintoma do atraso português, que nos remete diretamente para a América do Sul. Nada a apontar à TAP, que apenas estava a aproveitar um mercado que há muito deveria ser do comboio de alta velocidade, mas completamente contrário a qualquer política de redução de emissões poluentes que possa respeitar o acordo de Paris.

Vou ser muito direto. Portugal tem de assumir uma região altamente produtiva e criadora de riqueza nos serviços e produção, que vai de Setúbal a Braga. Região essa que tem de estar interligada por uma linha de alta velocidade a 300km/h permitindo uma viagem entre Lisboa e Porto em pouco mais de uma hora, parando em cidades intermédias que ficariam assim mais perto, construindo uma região coesa onde as sedes das grandes empresas podem estar em Aveiro ou em Coimbra, ou um ministério ou direção geral possa estar no Porto ou em Leiria sem que isso seja um empecilho. Uma região com dois aeroportos, um no Sul e outro no Norte, que são acessíveis rapidamente por meio desta rede de caminhos de ferro, o que implica que qualquer aeroporto nesta grande região tenha de ter acesso direto a uma estação dessa linha de alta velocidade. Direto não quer dizer apanhar um autocarro ou o metro para a estação, direto quer dizer descer as escadas rolantes a partir do terminal. Veja-se os exemplos dos aeroportos de Frankfurt, Schiphol (Amesterdão) ou Copenhaga/Malmö. Todos com ligação direta a comboios de longo curso localizados em regiões de grande produtividade.

E que tem isto a ver com planeamento? Tudo. Este tipo de plano não se executa numa ou duas legislaturas, é preciso olhar para o longo prazo. Coisa a que ninguém olhou no tempo do Estado Novo ao colocar um aeroporto à distância de uma avenida do centro da cidade. Essa infraestrutura tem de desaparecer do meio de Lisboa. É terceiro mundista. O facto de não haver dinheiro agora para um novo aeroporto não significa atamancar uma espécie de aeródromo de maior capacidade do outro lado do Tejo. E é aqui que a definição de planeamento entra em cena. Planear significa definir um conjunto de tarefas, ações e recursos a executar no tempo com vista a atingir um determinado objetivo. Há diversos tipos de planeamento, mas o que mais me interessa referir é o estratégico, que é aquele em que Portugal mais falha. Este requer uma visão de longo prazo. Isso não significa uma visão fundamentalista, já que necessariamente os planos se têm de adaptar de forma dinâmica à evolução dos tempos, mas por certo não caem à primeira crise, já que devem ser desenhados de forma robusta examinando todos os cenários possíveis. Resultam de uma ideia de futuro que queremos atingir com maior probabilidade, sob diversos cenários exteriores e interiores que muitas vezes não são passíveis de controlo. Já sabíamos que Portugal não era um país rico e a crise abateu-se de forma particularmente severa sobre o país. Mas o que terá isso a ver com a localização de um aeroporto ou a existência de uma linha de alta velocidade? Nada! À exceção da velocidade de execução, do replaneamento das tarefas que precisamos de executar para atingir os nossos objetivos de criar em Portugal uma região extremamente produtiva e criadora de riqueza para todos os Portugueses e os demais a que se lhes queiram juntar. Uma região, que ao ser consolidada ficaria também mais perto do interior, beneficiando assim todo o país continental.

A pandemia mostrou-nos que tínhamos no país excelentes técnicos de saúde pública, académicos, médicos e militares. O governo confiou, e de alguma forma escudou-se neles, e a única grande asneira que fez foi à sua revelia. Pergunto-me porque é que nas outras áreas governativas continuam os nossos políticos a fazer de conta que são engenheiros. Como se a construção de estradas ou de pontes fosse a sua especialidade. Como quem diz: “Eu de pandemias não percebo, mas de estradas e comboios sou especialista”. Aplicar mais betuminoso é algo que está perto do coração dos políticos portugueses. A década de 90 foi pródiga, felizmente vivemos uma acalmia nessa sofreguidão. Esta política foi-se estendendo no tempo quando já sabíamos que o balanço entre custos e benefícios de determinados investimentos era duvidoso e eles aí estão para ser pagos por todas as próximas gerações. É óbvio que o que estamos a fazer agora vai determinar a riqueza do país nos próximos cem anos.

Portugal está a atravessar uma endemia de anemia que é pior que a pandemia. Não bastam os unicórnios ou o turismo para acordar o país. Esses são bons exemplos de sucesso, mas para um país anémico é preciso pensar mais além. Competir com os melhores da Europa. Não há nenhum fatalismo em ser Português; há é falta de planeamento. Com responsabilidades a alocar a todos os partidos. Procuram-se resultados imediatos numa legislatura, como se construir um país se pudesse fazer com mais um ou dois subsídios, uma intervenção aqui ou ali.

O leitor, que porventura me acompanhe noutros textos, por esta altura já estará habituado aos exemplos que dou da Holanda (Países Baixos), país que manifestamente os portugueses conhecem mal. Não é necessariamente o país perfeito. Chove muito, a comida do dia-a-dia é aborrecida e a língua é difícil. Mas no que concerne ao planeamento, e mesmo contando com alguns erros na sua História, tem por certo bons exemplos para dar ao mundo. Chegado aqui, surpreendeu-me que houvesse um aeroporto em Roterdão tão pequeno que pouca gente teria ouvido falar em tal infraestrutura. Roterdão fica a cerca de 70 quilómetros de Amesterdão. A cidade está muito próxima de Haia, a capital administrativa do país. Juntas têm um pequeno aeroporto chamado de Roterdão/Haia para uma população conjunta de 2,62 milhões de habitantes. Aeroporto com poucos voos, sendo a maioria de ligação a cidades europeias mais próximas da região ou charters. O inusitado é que Roterdão é uma capital económica, o maior porto da Europa e conta com sedes de grandes empresas, como por exemplo, a Unilever. Naturalmente que houve pressão para fazer evoluir o aeroporto desta cidade para satisfazer esse mercado e para, simultaneamente, não ficar atrás dos seus competidores internos: a cidade de Amesterdão (semelhante à rivalidade entre Porto e Lisboa em Portugal). A estratégia, no entanto, nunca passou por ter vários aeroportos a competir uns com os outros em tão pequeno território, a estratégia foi a de criar um grande aeroporto que pudesse competir com os congéneres europeus e que permitisse a um holandês chegar a todo o mundo a partir do seu território. O aeroporto de Schiphol encontra-se, assim, entre os quatro maiores aeroportos europeus. Nada mau para um pequeno país. Mas então que foi feito do lobby dos habitantes, empresas e políticos de Roterdão? Perderam a sua capacidade de influência? Não. Conseguiram um comboio de velocidade alta que os leva a Schipol em pouco mais do que leva um habitante de Amesterdão a chegar ao seu aeroporto de comboio. Qual é a moral da história? Desengane-se o leitor que pense que quero acabar com o aeroporto Francisco Sá Carneiro, até porque 70 quilómetros não são 330 quilómetros. A moral da história é que há decisões estratégicas de um país que não andam ao sabor das pressões desde e daquele grupo de interesse.

Há decisões que têm essencialmente de ser independentes de qual o partido ou partidos que estão no poder e devem ser objeto, fundamentalmente, de análises técnicas. Há muitas localizações para um aeroporto em Lisboa, mas muito poucas que façam algum sentido aos Portugueses das próximas gerações. E para que servem os políticos então? Estes são os representantes do povo, são eles que têm de fazer as perguntas certas e validar as políticas certas e para isso precisam de se modernizar e abrir-se à sociedade civil. E já vão tarde.