A situação na Ucrânia que se arrasta, pelo menos, desde dezembro, é um tipo de tensão a que vamos assistir muitas vezes nos próximos anos. É uma situação típica de fases de transição de poder, como a que estamos a viver agora, em que uma potência com intuitos revisionistas testa os limites da potência de status quo. A Rússia, que nunca escondeu que quer estender a sua esfera de influência e empurrar a NATO para uma posição de insignificância, viu uma oportunidade de exerce pressão sobre os Estados Unidos e fez questão de a aproveitar – como, aliás, seria de esperar tendo em conta o comportamento russo desde que Vladimir Putin tomou o poder, há mais de duas décadas.

Vamos, então, aos factos.

No Verão passado, na primeira cimeira bilateral EUA-Rússia, Biden declarou a Putin e à imprensa que considerava que Moscovo era uma grande potência. Isto quer dizer, pelo menos, três coisas: (1) que os norte-americanos não se intrometerão na vida russa, caso não haja atravessamento de linhas vermelhas que prejudiquem Washington e os seus aliados; (2) que os norte-americanos reconhecem legitimidade à existência de Moscovo, tal como é. Enquanto a China continua a ser um inimigo existencial, a Rússia é um ator com o qual se compete e coopera consoante as necessidades; e (3) o Kremlin tem o direito do tutelar a sua vizinhança próxima, porque as grandes potências têm o direito a ter uma esfera de influência. Concedendo um estatuto diferente à Rússia, terá pensado a administração americana, “isolava” Pequim e apaziguava Moscovo.

Putin esperou por um momento de fragilidade norte-americana para reclamar o seu prémio. Esta chegou com a debilidade internacional da retirada do Afeganistão (final de agosto) e a franqueza com que os norte-americanos têm vindo a analisar a sua situação interna – a fraca popularidade de Joe Biden desde setembro e o incremento da polarização americana que, segundo diversos especialistas, tem condições para se tornar violenta. Assim, Putin fez uso do cenário que lhe proporcionavam os exercícios militares regulares de Inverno e apresentou aos Estados Unidos um ultimato em que exigia o regresso da NATO às fronteiras de 1997, o recuo do armamento, mesmo que defensivo, entre outras exigências que nunca seriam aceites por Washington, sob pena de destruir a NATO que, salvo melhor opinião, ainda é a aliança mais duradoura da história. Putin cobriu as suas exigências com um manto de intimidação, fazendo acreditar que, caso não se cumprissem parte das suas exigências – o Kremlin sempre soube que nunca seriam todas – deflagraria uma “guerra” na Ucrânia.

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A resposta dos Estados Unidos foi gradual mas persistente. Primeiro, insistiu em sansões severas. Depois, começou a denunciar diariamente os avanços da Rússia, tal como Kennedy tinha feito com sucesso, na Crise dos Mísseis de Cuba. Uma vez ou outra, por Anthony Blinken ou Jack Sullivan, deu a entender que não estava fora de questão usar “outros meios” caso a Rússia avançasse para além das suas fronteiras. O facto de a diplomacia americana estar a tratar estas tensões como se trata de uma guerra iminente, torna a intimidação da Ucrânia por parte de Moscovo um acontecimento em grande escala junto da comunidade internacional e denuncia as intenções não justificadas do Kremlin. Biden, visto por muitos como um presidente fraco, está a manobrar esta situação com bastante perícia.

A tensão e a guerra de informação vão manter-se por mais algum tempo. Washington continuará a dizer que a guerra vai começar no dia do encerramento dos Jogos Olímpicos de Inverno em Pequim e que nada justifica a ação musculada de Putin na fronteira. Moscovo vai continuar a dizer que a NATO não correspondeu às suas imposições legítimas e a evocar os direitos das minorias russas em território estrangeiro. os membros da NATO vão continuar a dizer que ainda há lugar para uma solução  diplomática.

Ainda pode ainda haver uma guerra? Pode. Por três razões: nestas situações em que se escalam tensões pode sempre haver um momento em que um acidente ou mesmo um cálculo mal feito pode levar algum dos atores, mais afoito, a disparar o primeiro tiro. E se as forças militares estacionadas na fronteira da Ucrânia não têm dimensão para uma invasão em larga escala, o Kremlin ainda pode ordenar uma incursão capaz de destruir o exército ucraniano. E as manobras de quinta-feira dos separatistas do Donbass abrem a porta a Putin para fazer a alegada defesa dos cidadãos russos fora de fronteiras.

Ainda vamos ter de esperar até que as tensões se desanuviem. Mas mesmo que não haja uma guerra limitada, o Kremlin pode dizer que “ganhou” a Ucrânia (mesmo que seja por falta de comparência ocidental), a NATO pode dizer que mantém as suas fronteiras intactas, os Estados Unidos podem dizer que evitaram uma guerra iminente. Ninguém perde a face.

É legítimo perguntar se alguém ganha com estes meses de inquietude para, na verdade, nada mudar significativamente. Não me parece que haja vencedores nem vencidos. Há, essencialmente, um tipo de tensão que vamos ver muitas vezes daqui para a frente: potências a testar os limites umas das outras. Muito mais difícil será se estas tensões se replicarem no Indo-Pacífico, o que não está, pelas razões elencadas acima, do todo, fora de questão.