Imaginemos que no supermercado onde faz compras, o empregado demorou 20 minutos a cortar 200 g de fiambre, esperou mais 20 minutos no talho onde não se encontrava ninguém, já que o único empregado talhante também tem direito a satisfazer necessidades fisiológicas, na peixaria não existia papel próprio para embalar peixe e nas prateleiras, o preço de cada tipo de leite não era perceptível dada a confusão de rotulagem e preços. Depois desta pequena odisseia, chegou à caixa para pagar, onde, finalmente, tudo correu com grande eficiência e profissionalismo. Conclusão: para receber, o supermercado é bom. Para servir os clientes é muito mau. Tem boa opção. Não voltar lá.

Acontece que existe entre nós outra caixa para pagamento colectiva, que funciona razoavelmente bem. Chama-se AT- Autoridade Tributária e Aduaneira e, para receber, não fica notoriamente a perder em eficiência com qualquer caixa de supermercado. Acontece que a esta caixa não pode deixar de ir. Ou melhor, não precisa sequer de ir, porque a AT tem a amabilidade de o visitar na sua caixa de correio, por email ou sms.

Em tempos antigos, o povo (nessa altura não existia o conceito de cidadão) pagava impostos para que o Rei e o seu séquito ou corte pudessem viver sem trabalhar. Com o aparecimento dos Estados-Nação no século XVII, os impostos continuaram a suportar os gastos da coroa e companhia, mas também financiavam exércitos profissionais, polícia, segurança e algum arremedo de tribunais. A noção de que o pagamento de impostos tem um retorno em serviços para todos os cidadãos é uma noção muito recente, mais propriamente a partir de meados do século XX e ainda assim sobretudo na Europa.

Ora, o que promete o Estado dar, em troca dos impostos que colecta, directa e indirectamente? Serviços públicos universais gratuitos ou tendencialmente gratuitos, como sejam transportes públicos acessíveis, serviços universais de saúde, escola pública, tribunais que resolvam os diferendos entre os cidadãos para que não sejam resolvidos a tiro, segurança publica, defesa e mais uns quantos direitos consensualmente aceites como fazendo parte do serviço público.

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Mas é isso que o Estado português realmente devolve? A CP presta de facto um serviço público fiável? Consultas médicas e cirurgias com anos de espera são um serviço de saúde? Escolas sem aulas e sem professores ainda podem designar-se por escolas? Tribunais onde os funcionários praticam ou não os actos judicias conforme bem entendem, em regime de self-service, são mesmo tribunais?

A desigualdade entre a obrigação de pagar que recai sobre os cidadãos e o direito a que lhes seja prestado o serviço equivalente é em Portugal enorme. A título de exemplo, porque razão se pagam as portagens em troços de autoestradas quando estes se encontram em obras? O assunto chegou a ser discutido, as concessionárias opuseram-se e o Estado cedeu. Porque razão se continuam a pagar os passes de transportes quando o serviço é inexistente, intermitente ou imprevisível? Porque razão se terminou com o atendimento presencial sem marcação nos serviços públicos, à boleia de uma pandemia que já não existe? Porque razão qualquer segurado ou depositante pode deslocar-se ao balcão da seguradora ou do banco privado sem marcação e tem de a fazer para um serviço público cujos funcionários são pagos com o dinheiro dos seus impostos?

A relação entre o contribuinte português e o Estado, sempre foi profundamente desigual em desfavor do contribuinte. Com a degradação dos serviços públicos – facto tão notório que carece de qualquer demonstração – encaminha-se a passos largos para uma inexistência de contrapartidas ao pagamento de tão elevada carga fiscal, com resignada aceitação da maioria dos cidadãos.

De facto, por muito justo que fosse, não é possível fazer uma greve aos impostos, até porque o terço da população que os paga ainda seria considerada criminosa e punida pelo governo. Mais curioso, ou talvez não, essa punição até teria o apoio dos dois terços dos portugueses que não pagam impostos, que sempre se resignaram a ter pouco, para não correrem o risco de ficar ainda com menos. Não é por acaso que Salazar governou em ditadura 48 anos sem grandes sobressaltos. Conhecia bem o povo português, disso não reste dúvida. Há quem chame a tudo isto brandos costumes e há quem ache que, na verdade, é simplesmente mansidão.