A poeira assentou, uma semana passou. Veio-me uma questão universal, a imortal shakesperiana “ser ou não ser”, com a diferença de que, desta vez, no lugar do verbo ser, veio o verbo escrever.
Escrever ou não escrever sobre Ronaldo: eis a questão. De futebol, só sei que nada sei. De futebol, consigo perceber a emoção e o fenómeno social gregário, consigo perceber a alegria do golo, da vitória. Consigo alcançar o entusiasmo frenético de sentir que estamos ligados uns aos outros quando gritámos e saltámos do sofá ao ver Diogo Costa defender três penáltis de seguida (ou ao ver três jogadores falharam três penáltis de seguida, pois se há coisa que vinga no futebol, e na vida, é a perspectiva de cada um). De futebol, não consigo perceber a barbaridade de dinheiro que move, o exagero e a importância que tomam para o sentimento de orgulho de um país. Quer dizer, eu consigo perceber, mas não deixa de me chocar.
Que Ronaldo foi um grande jogador parece-me um facto consumado que não vale a pena contestar. Que Ronaldo já não é o mesmo jogador que foi também me parece um facto razoável para quase todos. A passagem do tempo, essa sim, é um facto mais que consumado para todos os seres humanos. O tempo passou por Ronaldo e coisa mais natural não existiria se o jogador tivesse conseguido perceber que o mesmo tempo que passa por ele, é o tempo que passa por todos, e que o facto de ter jogado 120 minutos no último jogo, e muitos outros nos anteriores, acabou por impedir vários jogadores, como Diogo Jota, Gonçalo Ramos, Francisco Conceição, João Neves, ou até o próprio João Félix, de jogarem muitos mais minutos. Também eles não serão jovens para sempre, também eles têm e merecem a oportunidade de mostrar em campo a sua paixão pelo futebol. A escolha de deixar Ronaldo jogar é também a escolha de impedir outros de jogar no seu lugar e, infelizmente, não podem jogar 12, 13, 14 nem 15.
A ideia de que Portugal deve muito a Ronaldo faz-me alguma confusão. Tive a sorte de poder viajar com os meus pais durante toda a minha vida e sempre assisti e fiz parte, mesmo nos países mais longínquos, do célebre diálogo:
– Where are you from?
– Portugal.
– Oh, Ronaldo!
Sim, é verdade, toda a gente sabe que para a esmagadora maioria do mundo somos só Ronaldo. O argumento que tenho ouvido mais contra aqueles que tecem uma opinião crítica sobre o protagonismo que Ronaldo tem tomado na nossa seleção é este “Ingratidão, se não fosse o Ronaldo, ninguém queria saber de Portugal!”. Sinceramente, este argumento não me revela o valor do jogador, mas sim os valores pelos quais se regem o mundo e a sociedade. Se a maioria das pessoas prefere conhecer um país e associa a sua importância apenas a um jogador de futebol, tenho muita pena, mas é um problema delas. Sempre me entristeceu que o nosso país fosse só Ronaldo. Ainda se fosse “oh, yes, Portugal, thesea, thefood, thepeople, fado, Camões, Saramago (ninguém é obrigado a gostar, mas que ganhou o Nobel ganhou, mas de que vale contra 5 ou 6 bolos de ouro, não é?), Ronaldo, great country!”. O problema não é estar lá Ronaldo, o problema é a importância desmesurada que demos ao facto de estar lá Ronaldo. Ronaldo tem talento, tem uma história de vida inspiradora, sim, ninguém o desdiz, mas nada disto aconteceria num país que se orgulhasse mais do que é. O facto de que, para tanta gente, o único motivo de orgulho de ser português seja partilhar a nacionalidade com Ronaldo é, no mínimo, embaraçoso.
Que mais dizer? Que Ronaldo jogou mais umas horas e fez o que quis? Que tantos jogadores jovens foram impedidos de jogar e que vão sentir a passagem do tempo nas pernas durante mais 4 anos até ao próximo Europeu. “Ah, mas eles têm a vida toda pela frente, Ronaldo merece por tudo o que fez por nós!” Bom, eles não têm a vida toda, ninguém a tem e, para além disso, se o auge típico da carreira de um jogador de futebol é entre os 20 e os 35 anos, não será injusto adiar a possibilidade destes rapazes viverem a sua carreira?
E alguém diz lá ao fundo (deve ser a voz de um velho sábio) “Que interessa isto tudo? Eles são todos milionários e nós andamos aqui à batatada por ninharias”. É bem capaz de ser verdade, mas é assim. O que se pode querer de um país que mostra Ronaldo como a sua bandeira turística? Eu não comprava bilhete. Estou a brincar, comprava sim, que este país é maravilhoso, mas é para o outro Portugal, o que se esconde por detrás destas ninharias.