Edgar Allan Poe cunhou a frase “um sonho dentro de um sonho” num dos seus poemas. Hoje, a nossa forma de viver não faz juz a esta poesia. É provável que já não sejamos os sonhos de ninguém (nem de nós próprios), mas os memes uns dos outros.

Segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, um meme é uma “imagem, informação ou ideia que se espalha rapidamente através da Internet, correspondendo geralmente à reutilização ou alteração humorística ou satírica de uma imagem”.

Em conversas com pessoas descrentes no sistema, ouvem-se frases repetidas pela geração dos nossos pais ou avós “Mário Soares, Sá Carneiro ou Álvaro Cunhal: qualquer um deles era mil vezes melhor do que Luís Montenegro, Pedro Nuno Santos ou André Ventura”. Falava-se de política, mas também de História, da História da Humanidade e da História da política. Hoje, os políticos não falam de História, mas o que a História nos ensinou é que poderemos vir a ter muitos arrependimentos no futuro.

Note-se que nem todas as pessoas descrentes no sistema têm de ser crentes em André Ventura. É importante deixar um espaço para os “dissidentes” do sistema que não se identificam com nenhum dos líderes atuais, nem mesmo com André Ventura. Há quem diga chega e não vote Chega.

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Nasci em 2001, o que quer dizer que não acompanhei sequer de perto a campanha de José Sócrates e de Manuela Ferreira Leite. Fui uma das crianças que teve nas mãos o famoso “Magalhães”, o computador portátil de baixo custo a que muitos alunos tiveram acesso. Mas lembro-me bem de como era o mundo em 2015, e acreditem que até um jovem de 22 anos, para quem a “sociedade dos memes” poderia ser quase uma coisa inata, se apercebe da velocidade estonteante desta cascata descendente. É divertido? Talvez seja, o humor não está em causa. Como tantos já disseram, o valor da forma tem-se sobreposto ao do conteúdo, mas talvez vejamos isto com cada vez mais frequência, até um nível de exaustão tal que, um dia, nos fartaremos do que fizemos a nós próprios.

Está à vista em todo o lado. Na política, de uma forma abissal; na educação; na cultura. Quão frustrante poderá ser saber que já não importa o que dizemos, mas as gafes que cometemos. As redes habituaram-nos a uma capacidade atencional absolutamente redutora. Já não é estimulante ouvir alguém falar sobre História, Cultura ou Política, a não ser que grite palavras que, no fundo, não querem dizer nada. “Prostituta política!”, grita um. “Ele disse prostituta política!, grita outro”. PNS não é PNS, Luís Montenegro não é Luís Montenegro, Ventura não é Ventura. São marionetas da sociedade e de si próprios. Não é assim tao difícil imaginar um multiverso onde os três trocavam de corpo e ninguém reparava. O disfarce dos pós-debates, das interpretações múltiplas, das redes sociais, dos memes em catapulta tira-lhes toda a identidade e toda a verdade. São construções das bocas de toda a gente.

A política já não é um debate do saber e do conhecimento, é uma corrida para ver quem chega ao fim do dia com mais tempo de antena nos meios de comunicação. É para ver quem usa mais gola alta, quem diz a palavra mais escandalosa, quem acusa as palavras escandalosas dos outros com mais veemência.

Já só se fala de cultura para discutir se homens ainda podem fazer o papel de mulheres, ou se heterossexuais podem fazer o papel de transsexuais. Já só se fala de educação para discutir se os meninos estão a ser avaliados de forma exigente. Já não se fala de nada por paixão. O programa curricular da disciplina de Português é igual há provavelmente 50 anos, nenhuma turma de 30 alunos tem mais do que 4 alunos a ler Os Maias, vos garanto. Mas os políticos preferem aumentar as ofertas de género para as casas de banho, e porquê? Porque é isso que alimenta as febres, as febres de quem defende estas práticas com unhas e dentes e as febres de quem as desdenha. Estamos a desdenhar e a defender assuntos que não criam pessoas informadas nem mais tolerantes, pelo contrário. A verdade é que não é escandaloso o suficiente pensar em estratégias para que os jovens voltem a gostar de ler Os Maias, não é escandaloso o suficiente um político que pense nisto, um político que almeje que as crianças de hoje não se tornem uma multiplicação do que já somos agora.

Estes assuntos tornaram-se assuntos menores. Por vezes, tenho a sensação de que já só se fala de política para odiar. Ainda nunca tinha visto uma parte do meu país odiar tão profundamente outra parte. Há todo um grupo intelectual da sociedade que odeia, veementemente, todos os homens e mulheres que seguem Ventura, por exemplo. Não acho que a palavra odiar seja exagero para o que está a acontecer, as redes sociais estão repletas de incompreensão, tanto de um lado como de outro. O grupo “intelectual” dirá que não há qualquer espaço para tentar compreender o outro lado. O grupo dos “Venturas” dirá que a arrogância do outro lado é tamanha.

Ambos podem estar certos, mas o que o grupo que desdenha ainda parece não ter compreendido, é que o tamanho do ódio é proporcional ao tamanho da revolta. Eu não sei o que vai acontecer no dia 10 de março, mas aparentemente, são cada vez mais os homens e as mulheres que seguem Ventura. Quem vai a outra parte do país culpar por este fenómeno? Vão culpar um homem só, vão culpar a ignorância dos portugueses, vão culpar os meios de comunicação que tanta atenção deram a Ventura? Ou será que daqui por 20 anos se vão culpar a eles mesmos, pelo fosso que abriram na sociedade, a sociedade dividida ao meio, a sociedade dos “evoluídos” e dos “tacanhos”.

Ninguém, nenhum partido, nenhum líder, está a conseguir juntar as pessoas. Juntar as pessoas dá muito trabalho, tanto trabalho, que é dez vezes mais fácil afastá-las.