De acordo com a Organização Internacional para as Migrações (OIM), desde o início da ofensiva russa mais de 1,25 milhões de pessoas fugiram da Ucrânia, provocando “a maior crise humanitária que a Europa viu desde a Segunda Guerra Mundial”. A história parece ter uma tendência para se repetir, mudando alguns atores. Só assim talvez se corrijam erros estratégicos e de planeamento. Embora esteja em crer que os acontecimentos superam sempre em larga escala a capacidade de atuação que cada Estado-Membro europeu foi ultimando para responder aos desafios constantes que nos são colocados diariamente em matéria de acolhimento dos refugiados. Não quero desqualificar esforços, pelo contrário; com tudo se aprende e tendencialmente se avança, mas há matérias de substancial importância que envolvem seres humanos,onde convém não responder por reação, não podendo estar desatentos aos sinais que a história nos apresenta.

A guerra que nos parecia uma coisa de outros continentes, talvez menos desenvolvidos que o nosso, chegou-nos à porta. Desta fez os refugiados não atravessam oceanos, tendo uma identidade sociocultural que nos é familiar, sentindo nós menos “barreiras”. Ao confrontarmo-nos com as nossas próprias vulnerabilidades, somos também invadidos por uma ameaça que pensávamos distante das nossas “zonas de conforto”; a “condição” de refugiado era algo que supostamente nos era longínqua, mas afinal não há imunidade para se ficar despejado da própria pátria. Parece que basta um ditador, munido de um poder pretoriano para que tudo deixe de ser de um dia para o outro um lugar seguro, onde se bombardeia sem piedade a democracia.

Estamos perante uma crise migratória que poderá vir a superar, em termos de escala, a de 2015. Numa Europa, que, embora, mais apetrechada de Diretivas e Regulamentos em matérias de asilo, não reúne, ainda, consensos nesta matéria, nem tem o mesmo nível de investimento financeiro em políticas públicas de acolhimento e, subsequentes medidas e programas de integração social dos refugiados em cada Estado-Membro. Em alguns países Europeus, como é o caso de Portugal, verifica-se uma quase sempre generosa solidariedade para com os movimentos migratórios e onde, simultaneamente, existe uma clara transferência para o terceiro setor do papel no acolhimento e conceção de proteção social aos refugiados.

O Parlamento Europeu, reunido em Assembleia a 1 de março, condenou com a maior veemência a agressão militar “não provocada e injustificada” da Rússia contra a Ucrânia e exige que o Kremlin ponha termo a todas as ações militares no terreno. Parece, pois, que para Putin o ditado português lhe é muito familiar: “Palavras leva-as o vento”. Nessa mesma Assembleia é feito um apelo e é assumido o compromisso da UE de ativar a diretiva relativa à proteção temporária, a fim de proporcionar acesso imediato à proteção a todos os refugiados da Ucrânia que fogem da guerra. A responsabilidade pelo acolhimento dos refugiados que chegam às fronteiras externas da UE deve ser partilhada equitativamente entre os Estados-Membros.

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Portugal antecipou-se ao acordo de princípios estabelecido ao nível europeu e nesse mesmo dia 01 de março, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 29-A/2022, estabelece os critérios específicos da concessão de proteção temporária a pessoas deslocadas da Ucrânia. Portugal faz notar que tem uma vasta comunidade de cidadãos ucranianos residentes e de cidadãos nacionais com origem ucraniana (cerca de 40 mil), por isso assume reunir condições para acolher os deslocados em consequência da guerra em curso na Ucrânia que procurem em Portugal um lugar para residir em paz e em segurança. Não devemos esquecer que Portugal ainda está a braços com os estilhaços da Covid que nos empurrou economicamente para a dependência do PRR, uma tal bazuca que cada vez parece mais fraca num mundo em que se debate o risco de uma guerra nuclear.

A 05 de março é divulgado que foram, desde o início da guerra, aceites pelo SEF 142 pedidos de proteção internacional de cidadãos ucranianos. Ao abrigo de um mecanismo mais célere, menos burocrático, o estatuto de proteção temporária concedido aos Ucranianos em Portugal será equiparado ao estatuto de refugiado para efeitos de acesso a prestações sociais. Embora para o acesso a algumas das prestações dos regimes não contributivos, como é o caso do Rendimento Social de Inserção, exista a necessidade legal de mediar um ano entre concessão da autorização de residência e o direito a requerer esta prestação de apoio social (RSI). Ora, os cidadãos ucranianos com estatuto de refugiado agora concedido terão de esperar um ano para poder aceder a esta medida. Estará o governo a prepara indispensáveis medidas de exceção? Em alternativa, o financiamento para o acolhimento dos cidadãos refugiados da Ucrânia em Portugal pode ser acionado pelo Fundo para o Asilo, a Migração e a Integração (FAMI), mas para isso terá a União Europeia de disponibilizar apoios financeiros, o que até ao momento ainda não ocorreu. Temos ainda de equacionar os acessos à saúde num SNS com poucos recursos humanos, onde urge o investimento em médicos de família.

Da Ucrânia saem mulheres e crianças com narrativas de sofrimento, é por isso, essencial que os planos de acolhimento comtemplem, não só respostas em infraestruturas, mas também que possam ser formadas equipas técnicas de apoio social e psicológico especializado. Às crianças vitímas de guerra deve a infância ser urgentemente devolvida, através daquilo que é a rotina promotora de segurança, onde a escola é um elemento central.

O governo português comprometeu-se, através da citada Resolução, a garantir ainda alojamento aos refugiados ucranianos. Ora, em Portugal uma das matérias mais sensíveis é, exatamente, a política de habitação. A habitação em Portugal pertence, maioritariamente ao mercado livre de arrendamento, isto é, ao sector privado, com níveis muito elevados de alojamentos ocupados por proprietários e por baixos níveis de habitação social (cerca de 2% do total de habitação existente). Isto deixa-nos uma outra questão: como irá Portugal acolher os ucranianos que solicitam asilo e, naturalmente, venham a precisar de alojamento. Os municípios são os principais proprietários de habitação social. Nos últimos dias assistiu-se a autarquias que vão ultimando pavilhões para alojamentos de emergência, mas as alternativas permanentes de habitação devem ser equacionadas, tempos demasiado longos em acolhimentos provisórios são preditores de entropias, dificultando a desejada estabilidade e integração social dos refugiados, podendo mesmo contribuir para o agravamento das situações de exclusão a que estão, naturalmente, mais sujeitos.

Cinco dias depois da invasão Russa, a Câmara Municipal de Lisboa toma a liderança e cria um plano de apoio aos ucranianos que vai passar não só por doações para as famílias ucranianas a viverem na cidade, como também pela abertura de um centro de acolhimento temporário para os refugiados que cheguem a Portugal. Foi ainda divulgado que o refeitório municipal de Monsanto está a servir refeições aos cidadãos ucranianos que delas necessitem. Nos últimos dias assistiu-se a uma mobilização sem precedentes da sociedade civil numa manifestação de solidariedade. Mas temos muito caminho por trilhar, numa inequívoca incerteza quanto ao dia em que esta guerra irá acabar.

Segundo dados da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) , em 2019 Portugal tinha 2387 refugiados (estatuto legal), estando nesse ano em apreciação 1079 pedidos de proteção internacional (requerentes de asilo a aguardar por decisão judicial). Estaremos à altura do desafio que está na iminência de nos ser colocado? Uma solidariedade social e particular será suficiente? Creio que não; será necessário complementá-la com políticas públicas subsequentes, que lhe dê continuidade. Sem isso, esta solidariedade agora manifestada é uma caridade casuística que se esfumará com o tempo.

Sabemos que temos uma sociedade civil mobilizada, mas estamos ainda numa fase quente do acontecimento onde os valores humanistas, os princípios universais dos diretos humanos tomam conta da opinião pública. Este tempo é curto e deve ser aproveitado para se equacionarem estratégias de investimento entre um setor público e privado que se deve aliar. Uma opinião pública favorável é terreno fértil para o investimento em medidas concertadas de acolhimento aos refugiados. As atitudes dos cidadãos são sempre mais favoráveis quando a sua perceção é a de que os refugiados têm a possibilidade de se integrar mais facilmente.

Não podemos, no entanto, ignorar que Portugal enfrenta questões sociais graves, com níveis de pobreza que ainda nos envergonham, não devendo existir “refugiados de primeira e segunda”, não podendo existir critérios de acesso a respostas sociais diferentes para as mesmas necessidades populacionais. Não se recomenda adotar tratamentos diferentes para problemas sociais idênticos. A crise migratória de 2015 teve efeitos significativos na política europeia e ilustrou divisões, movimentos nacionalistas que agora nos fraturam. Não podemos negar que os valores europeus continuam a ser romantizados em Cartas e Tratados, mas na prática de pouco nos têm valido. Será que é desta vez que vamos, finalmente, aprender a lição e alcançar a reforma do Sistema Comum de Asilo Europeu?