Pode parecer uma pura questão semântica, ou uma simples guerra de palavras. Mas não é. Por detrás do uso de uma ou outra expressão, estão duas formas de encarar o fenómeno: uma forma de exploração da pessoa e de violação dos direitos humanos, ou um trabalho como outro qualquer.

A proposta de criação, no âmbito da Câmara Municipal de Lisboa, de uma “plataforma local de intervenção na área do trabalho sexual” suscitou a viva oposição de organizações que trabalham no apoio às vítimas da prostituição (que outros designarão como “trabalhadoras do sexo”): a associação «O Ninho”, o Movimento Democrático de Mulheres (MDM) e a Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres (PPDM). Porque consideram que a designação “trabalho sexual” tem subjacente a ideia de normalização da prostituição como um trabalho que deverá ser legalizado e regulamentado, como sucede com qualquer outro trabalho, essas organizações recusaram a participação nessa plataforma e lançaram a petição pública «Pela defesa da dignidade das mulheres – prostituição não é trabalho». Essa oposição não demoveu, porém, a maioria dos vereadores da Câmara lisboeta, do PS e do BE, apesar de ter tido o apoio dos restantes, do CDS, do PCP e do PSD.

Consideram essas organizações que a designação “trabalho sexual” contribui para o branqueamento da realidade dramática que é a prostituição. É uma realidade que conhecem bem. Pela minha parte, posso certificá-lo através da participação que tenho tido, como simples associado, na associação «O Ninho», que, desde há cinquenta anos se vem dedicando à reinserção social das mulheres vítimas da prostituição. Um trabalho que, obviamente, não teria sentido se a prostituição fosse um trabalho como outro qualquer, ou uma escolha autenticamente livre (que sentido teria ajudar as pessoas a deixar o trabalho que livremente escolheram e as realiza como pessoas?). Essa realidade não pode ser ignorada ou distorcida por uma visão ideológica libertária que desvirtua a liberdade sexual e espezinha a dignidade da pessoa.

Quem conhece a realidade da prostituição sabe que não há uma prostituição “benigna”, que a prostituição é, intrinsecamente, “maligna”. Disse várias vezes a Drª Inês Fontinha, que tem dedicado a sua vida a esta causa, que nunca conheceu uma mulher que lhe dissesse que queria ser prostituta. E ouvi recentemente o testemunho de uma pessoa que com ela colaborou durante mais de vinte anos. «Ao longo destes anos, já conheci mais mulheres vítimas de prostituição do que quaisquer outras pessoas; nunca nenhuma dessas mulheres me disse que essa atividade lhe trouxe alguma felicidade». O trabalho contribui para a realização e gratificação da pessoa sempre que esta é respeitada na sua dignidade e nos seus direitos. Ora, isso nunca sucede com a prostituição; por muito regulamentada que esta seja, nunca contribui para a realização e gratificação da pessoa.

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A prática da prostituição acarreta, com grande frequência, danos físicos e psíquicos que se distinguem dos que possam ser inerentes a qualquer outra atividade regular (ver, por exemplo, Roger Mattews, Prostitution, Politics and Policy, Routledge-Cavendish, Oxford, 2008, pgs. 43 a 60, e Melissa Farley, «Bad for the Body, Bad for the Hearth – Prostitution Harms Women even if Legalized or Descriminalized», in Violence against Women, 2004, 10, pgs. 1087 a 1125).

A violência associada à prostituição e os danos que ela acarreta para a saúde física e psíquica das suas vítimas não desaparecem com a sua legalização; pelo contrário, são incrementados com o incremento da prostituição que resulta dessa legalização. É assim porque não há uma prostituição “benigna”, nem a legalização a torna “benigna”. A prostituição (legal ou ilegal) é sempre a instrumentalização da pessoa, a sua redução a objeto de uma transação comercial. Não pode equiparar-se a qualquer outra prestação de trabalho ou de serviços. A sexualidade não pode ser desligada da pessoa (porque a pessoa é um corpo, não tem um corpo que possa alugar como quem aluga um objeto de sua propriedade). Ora, quando a pessoa é reduzida a objeto, a violência e o abuso tornam-se expectáveis.

Na prostituição, a pessoa é paga para fazer o que ela nunca faria de bom grado, ou outra pessoa nunca faria. É por isso que a prostituição é intrinsecamente “maligna”. O “cliente” da prostituição procura uma experiência de total controlo e domínio sobre outrem, não uma relação de reciprocidade e respeito. Reduzir uma pessoa a objeto é arrogar-se sobre ela os direitos que se têm sobre as coisas, mais do que os direitos que se têm no confronto com as pessoas. É por isso que a violência física e psicológica acompanha em regra a prática da prostituição, seja ela clandestina ou legal, e é por isso que a ocorrência de episódios de violência física ou psicológica aumenta (e não diminui, como se pretenderia) com a legalização da prostituição. Se essa violência é estrutural (e não ocasional), e se a legalização se traduz no incremento da prostituição, não pode esta deixar de se traduzir no aumento dessa violência.

É uma ilusão pensar que a prostituição pode ser, excluindo talvez poucos casos excecionais, fruto de uma escolha autenticamente voluntária. Não se escolhe essa atividade em alternativa a estudar Direito ou Medicina. A alternativa é, muitas vezes, a fome. Quando é a sobrevivência económica que está em risco, até a escravatura (que garantisse essa sobrevivência) poderia ser consentida. Não pode falar-se, nestes casos, em escolha livre. A alternativa para essas mulheres não é certamente uma carreira profissional mais ou menos gratificante. A alternativa é, quase sempre, a fome e a exclusão social.

Na origem destas escolhas estão situações de acentuada vulnerabilidade, onde também se incluem a toxidodependência ou a ocorrência de abusos sexuais na infância e adolescência (ver, por exemplo, Roger Matthews, op. cit. pgs. 1 a 94). Não é por acaso que, por exemplo, a grande maioria das mulheres que se prostituem na Alemanha provem dos países mais pobres da Europa de Leste. E — dizem-no vários estudos — cerca de noventa por cento das mulheres que se prostituem optaria por outra atividade se tal oportunidade lhes fosse concedida.

Um outro aspeto deve ser tido em conta. É frequente que a mulher prostituta desenvolva as chamadas estratégias de coping (ou “enfrentamento”) para resistir aos danos a que está sujeita. Negar esses danos e afirmar uma suposta liberdade de escolha pode fazer parte dessa estratégia, em ordem a “salvar a face”. Janice Raymond (Not a choice not a job, Potomac Books, Washington, 2017, pg. 23) cita a propósito o testemunho de uma “sobrevivente da prostituição”: se não dissesse às pessoas que a prostituição era uma escolha livre, «como poderia olhar-me ao espelho»?

Falar em liberdade de escolha nestas situações é fechar os olhos à realidade.

Não será sempre assim… Mas as situações em que não é assim são uma minoria, são a exceção que confirma a regra. E quando se elaboram leis, ou quando se legaliza uma atividade, é a regra que deve ser considerada, não a exceção. Ao fixar, por exemplo, a idade abaixo da qual o consentimento de um menor deixa de ser relevante, para efeitos de definição de crimes sexuais, no relacionamento sexual com um adulto, o legislador tem em conta o que é a regra no que se refere ao grau de maturidade dos jovens de acordo com a sua idade, não certamente o que poderá ocorrer num jovem de maturidade excecionalmente precoce.

Do mesmo modo, ao legalizar, ou ilegalizar, a prostituição, o legislador há de ter em conta a regra, não a exceção; e a regra é o forte condicionamento da liberdade de quem a ela se dedica. Se assim não fizer, o risco que se corre é o de, em nome do respeito pela liberdade de opção, dar cobertura legal a situações que não são, na sua esmagadora maioria, expressão de autêntica liberdade. Legalizar a prostituição pensando nas poucas mulheres que a escolheram entre alternativas benéficas não é sensato, porque acaba por consagrar e consolidar uma prática que a maioria vive como uma opressão.

Poderá dizer-se, por outro lado, que a debilidade da pessoa que se prostitui pode equiparar-se à debilidade de um qualquer trabalhador dependente. É essa debilidade que justifica o ramo do Direito do Trabalho, destinado à tutela dos direitos do trabalhador num contexto de igualdade formal e jurídica e de desigualdade fáctica e socio-económica. Daqui deriva um argumento em favor da legalização da prostituição como forma de garantir direitos laborais da pessoa que se prostitui. Há que rejeitar, porém, esta equiparação entre a prostituição e qualquer atividade laboral.

Como já atrás referi, a prática da prostituição acarreta, com grande frequência, danos físicos e psíquicos que se distinguem dos que possam ser inerentes a qualquer outra atividade regular E, como também já atrás referi, o dano que é inerente à prostituição liga-se à instrumentalização e coisificação da pessoa, que não se verifica numa atividade laboral lícita e que permite aproximar essa prática da escravatura (ápice da coisificação da pessoa), como o fazem muitas associações que lutam pela abolição da prostituição. A relação que se estabelece entre a pessoa que se prostitui e o seu cliente é, sempre, a que se verifica entre sujeito e objecto, não entre dois sujeitos.

Dir-se-á, ainda, em favor da equiparação da prostituição a qualquer atividade laboral, que se trata de prestar serviços de natureza sexual, como se prestam outro tipo de serviços que implicam alguma forma de atividade física e intelectual e alguma forma de comercialização. Este raciocínio parte do pressuposto de que o corpo não é constitutivo da pessoa, mas um objecto de que esta pode dispor. No entanto, a pessoa é uma indissolúvel unidade bio-psíquica, a pessoa não tem um corpo, a pessoa é um corpo. Só esta conceção permite apreender, na sua verdadeira extensão, os danos inerentes ao exercício da prostituição, da prostituição forçada (ser coagido à prática da prostituição não é o mesmo que ser coagido à prática de qualquer outra atividade), ou de outros crimes contra a liberdade sexual. A imposição de todo o tipo e frequência de práticas sexuais não pode equiparar-se à imposição de prestações no âmbito da atividade laboral que poderiam considerar-se análogas (mas que não são, na verdade, análogas, pelas razões indicadas). E a legalização da prostituição implica também imposições desse tipo, não apenas o reconhecimento de direitos.

À legalização da prostituição não podem deixar de estar associados um sinal e uma mensagem cultural provindos do Estado. Esse sinal e essa mensagem vão no sentido da aprovação dessa prática, ou, pelo menos, de indiferença perante os seus malefícios Ao legalizar a prostituição, o Estado transmite uma mensagem de aceitação da comercialização do corpo humano e da sexualidade humana (quando o corpo e a sexualidade não podem desligar-se da pessoa) e, portanto, de aceitação da degradação da pessoa a objeto.

Esta mensagem não pode deixar de afetar, em particular junto das novas gerações, a consciência social e cultural do valor da dignidade da pessoa humana, em especial da mulher. Há quem fale, a este propósito, em “cultura da prostituição”. Difundir a ideia de que a prostituição é um trabalho como outro qualquer e fruto de uma escolha livre a respeitar desvia as atenções da comunicação social e da opinião pública em geral a respeito das violências de que são vítimas as mulheres prostitutas e das situações dramáticas que conduzem a essa prática. O contexto cultural que assim se cria não serve de incentivo à mobilização do Estado, da sociedade civil e da opinião pública no sentido do apoio à reinserção social dessas mulheres. Se está em causa uma escolha supostamente livre e se estão garantidos os direitos laborais, nada haverá a fazer no sentido do apoio à mudança de atividade.

A opção terminológica entre “prostituição” e “trabalho sexual” não é, pois, desprovida de consequências. Falar em “trabalho sexual” é um primeiro passo, é preparar o terreno, no sentido da normalização e legalização da prostituição.

Não esqueço que com as expressões “trabalho sexual” ou “trabalhadoras do sexo” se pretende afastar o estigma associado às expressões “prostituição” e “prostituta”. Mas esse é um propósito votado ao fracasso. O eufemismo em nada muda a realidade na sua crueza. Recordo bem o que me disse uma colaboradora da associação “O Ninho” a respeito da satisfação e orgulho das mulheres apoiadas por esta associação quando passam a identificar-se com a profissão que passam a exercer (seja qual for essa profissão). Certamente não teriam essa satisfação e esse orgulho apenas porque passaram a identificar-se como “trabalhadoras do sexo”. E certamente ninguém terá satisfação e orgulho por assim se identificar uma pessoa da sua família.

Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz e presidente da mesa da assembleia geral da associação “O Ninho”