No quadro da União Europeia, e seguindo uma abordagem mais analítica das categorias políticas que temos à nossa disposição, o panorama em matéria de regime de governação política pode ser descrito do seguinte modo:

  • Os Estados-membros e a União Europeia partilham inúmeras “policy-areas”, a União precisa do consentimento dos Estados-membros para tomar decisões, exceção feita ao sistema europeu de bancos centrais e banco central europeu (SEBC/BCE);
  • Os Estados estão representados em Conselho de Ministros com diferentes ponderações de votos; os povos estão representados no Parlamento Europeu em função da sua importância demográfica, de qualquer modo, o sistema não é bicamaral;
  • O modelo europeu de “negotiated environment” assenta numa cultura política consociativa de negociação interinstitucional, o que dá uma hipótese real aos pequenos países de serem ouvidos, mesmo no caso de perderem peso relativo com os sucessivos alargamentos;
  • Na União Europeia, o poder tributário próprio não existe, a dimensão do orçamento é muito reduzida e o seu impacto estabilizador e redistributivo limitado, se pensarmos em termos estritamente macroeconómicos; a política de coesão permite alguma correção, mas não é, enquanto tal, um instrumento de finanças públicas;
  • A integração e concertação dos interesses sectoriais assenta na prática consociativa e regulatória das instituições da União, em particular da Comissão Europeia, já que os partidos políticos não parecem estar em condições de desempenhar essa função primordial; são, pois, os Estados, através dos seus governos e administrações que cumprem essa tarefa de integração social dos interesses;
  • No plano dos instrumentos de política económica verificamos que existem muitas “entidades não-eletivas”, sem uma adequada fiscalização parlamentar, logo, sem legitimidade política democrática (ver tabela):

Tabela: instrumentos, reformas e legitimidade política

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Por outro lado, e no atual contexto europeu, não há condições políticas suficientes para trazer à luz do dia o “federalismo furtivo” que vai sendo produzido nos bastidores das instituições europeias. Senão vejamos:

  • O Banco Central Europeu (BCE) faz o quantitative easing mas está proibido de gerar um “défice orçamental europeu”;
  • O Parlamento Europeu (PE) aprova um orçamento, mas não cria as condições para a Comissão Europeia realizar uma verdadeira política orçamental a começar pelo poder tributário próprio e o aumento dos recursos próprios;
  • A União Bancária (UB) e a Autoridade Bancária Europeia (ABE) fazem supervisão bancária, mas “privatizaram” o processo de resolução bancária enquanto se aguarda pelo 3º pilar, a garantia comum de depósitos;
  • A Comissão Europeia através da Direção Geral (DG) de Concorrência exerce as competências que lhe incubem no quadro do mercado único, enquanto se aguarda por uma política de regulação europeia mais compreensiva;
  • A Comissão Europeia através da DG de Assuntos Financeiros exerce as competências que lhe incubem no quadro das medidas de apoio financeiro, enquanto se aguarda por uma política orçamental mais ambiciosa de natureza federal.

O “federalismo furtivo” parece ser, mesmo, o maior paradoxo do atual momento da política europeia. Uma crescente indiferença política e democrática pelas instituições europeias deveria impedir o crescimento das “entidades não-eletivas”, mas, aparentemente, é o contrário que acontece como se retrata na tabela anterior. A duplicidade política é manifesta. Nas capitais nacionais, os dirigentes políticos procuram confortar a opinião doméstica com tomadas de posição firmes em matéria de soberania e interesses nacionais, em Bruxelas, tanto quanto parece, há um consenso suficiente para fazer crescer o número de entidades executivas não-eletivas. Chegados aqui, confesso que não é fácil passar do “federalismo furtivo” para o federalismo cooperativo, pelo  menos nas atuais circunstâncias.

Aquilo que aqui designo como proto-federalismo da União Europeia é de natureza pragmática e funcional e parece configurar-se como o que poderíamos denominar “um regime consociativo de governação”. Vejamos um pouco mais de perto:

  • Em matéria de competências, aproxima-se mais do federalismo cooperativo alemão de competências concorrentes e partilhadas, sendo difícil de prever um recuo em direção a competências exclusivas, sediadas na UE ou nos Estados-membros, além de que reduziria a capacidade política e institucional dos Estados mais pequenos;
  • Quanto à representação dos Estados-nacionais, a sua parlamentarização numa segunda câmara é um assunto completamente em aberto; todavia, as competências partilhadas apelam a uma forte representação dos Estados-membros a um nível central; o Conselho de Ministros ou mesmo o Conselho Europeu podem converter-se numa segunda câmara;
  • A negociação permanente e a cultura do compromisso, mesmo em situações de voto maioritário, estão mais próximas das duas anteriores características;
  • Em matéria orçamental, o federalismo europeu é mais americano do que alemão, quer dizer, não poderá existir federalismo político sem um verdadeiro federalismo orçamental que concretize uma forte perequação financeira entre os membros mais prósperos e menos prósperos da União;

Hoje, pelo que já dissemos, a polity europeia é um equilíbrio precário e delicado entre uma estrutura de governing (poderes verticais) e uma estrutura de governance (poderes horizontais). Do que fica dito, este regime de governação permanente, consociativo e regulatório, poderia ser assim esquematicamente caracterizado:

  • Uma governação de normas, regras, procedimentos e sanções,
  • Uma governação multiníveis de governo e administração,
  • Uma governação neo-corporatista, com uma forte atividade de lobbying,
  • Uma governação com forte presença de entidades não-eletivas,
  • Uma governação com mandatos duais, no Conselho Europeu e de Ministros,
  • Uma governação em processo de codecisão legislativo Parlamento-Conselho,
  • Uma governação em que a unanimidade prevalece sobre a maioria de voto,
  • Uma governação low cost e reduzida accountability. tanto quanto baste.

Na conjuntura atual, a União Europeia não reúne condições políticas para ser uma democracia orgânica ou uma democracia adversatorial (de governo e oposição) na linha de um Estado-nação, mas, antes, uma democracia deliberativa e regulatória sui generis, uma coligação de interesses de geometria variável, no quadro de uma subsidiariedade europeia multiníveis tão bem estabelecida quanto possível. De nada serve construir a legitimidade do projeto europeu a partir da sua megalomania e omnipresença, que nos esmagam e sufocam, do seu racionalismo ofensivo e da sua ordem burocrática que nos ofuscam e irritam, se a União Europeia não for capaz de criar um regime de governação política transparente, acessível e compreensível para todos e concebido a pensar nos interesses dos cidadãos europeus em primeira instância.

Nota Final

Agora que nos aproximamos das eleições europeias e face ao impasse em que nos encontramos, ou talvez por causa dele, estou convencido de que devido à relevância crescente da política externa de segurança e defesa e à urgência de uma maior expressão financeira da zona euro, a próxima reforma político-institucional da União Europeia ocorrerá, provavelmente, no terreno organizacional do federalismo cooperativo através de um padrão governativo singular adequado à conexão de vários formatos de governação: alguma mutualização financeira no quadro da zona euro por via da emissão de “obrigações europeias”, maior consistência dos vários mecanismos de emergência, em particular na relação entre estabilização e resolução, ou seja, entre dívida pública e dívida bancária, mais “cooperações reforçadas e estruturadas” entre Estados nas áreas da segurança e defesa, maior coerência na articulação entre instrumentos e fundos de coesão, maior atenção à cooperação territorial descentralizada entre regiões e cidades e, em geral, aos agrupamentos europeus de cooperação territorial (AECT).

Paira no ar, porém, uma dúvida existencial, a saber, a próxima composição do Parlamento Europeu e, correlativamente, a próxima formação da Comissão Europeia, já para não falar da política governativa de cada Estado membro, podem trazer para o primeiro plano da política europeia uma larga frente eurocética de cariz nacionalista e populista que, mesmo não sendo maioritária, poderá, ainda assim, bloquear qualquer tentativa séria de reforma político-institucional no sentido em que apontei.

Na falta de um forte sistema político-partidário transnacional que faça a integração dos diferentes espaços públicos nacionais heterogéneos, a União oferece-nos, por agora, um sistema político multiníveis, com vários públicos e muitos agentes principais, esferas difusas de discussão pública e processos deliberativos muito diversos, mais democracia deliberativa e consociativa do que democracia orgânica e adversatorial, talvez em busca de uma espécie de meta-democracia de regulação face às democracias convencionais existentes nos Estados-nacionais. Por todos estes motivos, não podemos abdicar de uma teoria crítica da razão europeia.  (Covas, 2019, A crítica da razão europeia, Editora Sílabo).

Universidade do Algarve