No programa “O Último Apaga a Luz”, assisti várias vezes a um diálogo entre Raquel Varela e Inês Pedrosa em que o tema da contenda era a pandemia pelo SARS-Cov-2. Entre o calor por vezes elevado da controvérsia e os argumentos científicos aduzidos pelo menos por uma das intervenientes, o que mais me impressionou então foi a impossibilidade de se contestar alguém com uma opinião já formada.

Imaginei assim como seria um diálogo entre estas duas intervenientes, sobre um outro tema e numa outra época. Por exemplo sobre o heliocentrismo quando este começou a ser assunto. Na altura, podia ter sido assim:

Já à partida Raquel Varela adivinhava que a sua argumentação iria irritar alguns intervenientes. Mesmo assim exclamou, como se a mente lhe tivesse regressado de fora daquelas paragens,

– Nicolau Copérnico, disse ela, um estudioso do Norte da Europa, publicou uma teoria muito interessante. Ainda não li o livro As Revoluções dos Orbes Celestes, mas, ao que me sussurraram, refuta a teoria geocêntrica defendida pelo “status quo” eclesiástico acusando-o no mínimo de obscurantismo científico.

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– Não entendo! O que significa esse refuta? – perguntava uma Inês Pedrosa apanhada pela surpresa de um assunto que sabia ser falado em surdina, mas cuja contestação punha em causa as suas convicções e a sua “fé” inabalável no poder instituído.

– Arrasa completamente a conceção da Terra ser o centro do universo e do Sol ter uma órbita em seu redor. E fá-lo com base em observações astronómicas, segundo as quais, e ao contrário do que o dia-a-dia nos parece sugerir, é a Terra que anda em torno do Sol.

– Mas que grande disparate – retorquiu Inês Pedrosa enquanto esbracejava e ajeitava uma cabeleira dois números acima e que teimosamente se deslocava para fora da área de conforto – Isso é um grande despropósito – asseverava ela, socorrendo-se dos escritos aristotélicos que, e citava – Desde que o homem começou a perscrutar os “Céus”, logo viu que o “astro rei” surge pela manhã vindo de leste e ao fim do dia se põe a oeste. Isso é um facto que qualquer um pode comprovar. Aliás – dizia Inês Pedrosa –, toda a metafísica desde os clássicos é suportada por dados de observação disponíveis a todos os mortais. E – acrescentava – o modelo Ptolemaico da organização dos “Céus”, nos seus vários níveis esféricos, é o único que permite ao universo englobar a vida terrena e a celestial, com harmonia, e numa unidade estratificada pelos vários níveis de importância. O modelo é antigo, está comprovado e funciona tão bem que permite uma ligação da matemática com a harmonia das esferas, no que é conhecido desde o tempo dos gregos como a “Música das Esferas”.

– De qualquer forma – continuava Inês Pedrosa, que se agitava entre o desconforto de quem se sente ameaçada pelo desconhecido e uma cabeleira que teimosamente lhe estreitava ainda mais as vistas, e em tom de fim de conversa disse – Eu conheço bem a teoria do Copérnico. Se o mundo “funcionasse” como ele sugere, então a Terra estava em permanente rotação – dizia ela cada vez mais incomodada com a cabeleira. – Se estivéssemos em movimento permanente senti-lo-íamos, não vos parece? Essa ideia do “heliocentrismo” é ridícula! Não tem ponta por onde se pegue, não tem qualquer apego à realidade.

Aí, Raquel Varela não sentiu a coragem necessária para contrapor com outros argumentos. Sendo historiadora ainda lhe estava na memória o destino de Giordano Bruno e Galileu Galilei. E na memória destes achou melhor ficar calada.

Este diálogo nunca ocorreu. Não ocorreu este, mas assisti a muitos outros sobre a COVID-19, cujo teor não diferia muito do esforço necessário para explicar a um geocêntrico empedernido um erro na sua convicção.

No programa em causa, foram inúmeras as vezes em que vi Raquel Varela criticar a posição de muitos especialistas. Uma posição naquele programa assumida e defendida por uma Inês Pedrosa que, para além de tudo, misturava questões de ciência com um feminismo serôdio. Nos diálogos de então, nunca se sentiu que qualquer contraditório pudesse questionar, minimamente que fosse, o conhecimento propagandeado. Vencia o “geocentrismo”.

E Raquel Varela argumentava que o que muitos peritos apontavam como evidências era desmentido por outros. Que havia outros especialistas, e um sueco em particular, que tinha implementado na gestão da pandemia por COVID-19 uma estratégia completamente diferente da adotada domesticamente. Sendo um país comparável ao nosso, os nórdicos tinham tido claramente melhores resultados sem o recurso às medidas drásticas que por cá se assumiram. E apresentava números. Números! Mas ninguém ouvia.

É sempre difícil demonstrar algo pela lógica quanto o zeitgeist e os nossos sentidos nos parecem indicar o contrário. Quando se implementa uma medida e observamos um efeito que julgamos ser consequência da intervenção, é sempre difícil explicar que o resultado pode ser independente da intervenção. Quando as posições estão neste nível é difícil manter uma discussão. Na altura, aquela argumentação, e no calor da altercação Raquel Varela deve ter-se recordado da Contra-Reforma. Não fossem outros tempos e a fogueira poderia ser o ponto final para a sua argumentação.

Peritos do desconhecido

Claro que em 2023 é possível revisitar este tema sem as paixões que então despertava. Mas, ou me engano muito, ou não fosse a guerra da Ucrânia ter ocupado o nosso “prime time”, e o tema da COVID-19 ainda era assunto corrente.

E era assunto, porque, tal como já disse noutras ocasiões, governar uma população com medo é sempre uma forma segura de não se ficar obrigado a evidenciar outros predicados. Mas, para além desta vantagem, outras há que ganham com esse esticar do tema: houve quem fizesse com a pandemia grandes fortunas ou engrossasse as já existentes; deu-se palco e tempo de antena a muitos peritos (e como eram peritos de uma situação desconhecida, passo a chamar-lhes de “peritos do desconhecido”); porque dar palco “aos peritos do desconhecido” estimula a sua produção de dopamina, o que configura uma adição, e por último, porque o tema se presta a promover heróis, seja para a Presidência da República, seja para a Câmara de Lisboa.

E muitos são os aspectos que com distância e sem a pressão de então deveriam ser reavaliados de forma isenta. Mas, como seria expectável, quem quer promover heróis não está disponível para revisitar o passado recente e dá a interpretação oficial dos acontecimentos como encerrada e definitiva.

Mas mesmo ao arrepio do zeitgeist corrente, por uma questão de seriedade, mas também para que falsos heróis não despontem das cinzas, parece-me importante que o tema e o desempenho dos intervenientes seja reapreciado. O local para o fazer pode não ser este, mas insisto, aspectos como: o diagnóstico do SARS-Cov-2 pelo método de PCR; um método de PCR com limiares de sensibilidade demasiadamente baixos; a desconfiança inicial dos testes de antigénio; o favorecimento de alguns laboratórios que em exclusivo foram autorizados para realizarem testes PCR; os custos dos referidos testes; os critérios de diagnóstico da doença; a composição dos grupos de risco; os critérios de incidência e mortalidade por COVID-19; o afastamento social; o uso compulsivo das máscaras; os confinamentos; o isolamento profilático; as quarentenas regionais; as imagens em “loop” de urgências com filas de ambulâncias, sem se perceber se a afluência tinha aumentado, ou a imagem resultava do processo de admissão e circuitos de doentes então implementados; a eficácia das vacinas; o processo de vacinação; as doses de reforço com vacinas de marcas diferentes; a vacinação realizada sem correspondência entre a estirpe inoculada e a que existia em circulação; o medo das mutações; a vacinação da crianças cuja melhor evidência nunca foi além de um vacinar, porque sim!, etc, são todo um conjunto de questões cujas respostas oficiais são no mínimo discutíveis, para não dizer falaciosas.

Avaliar a eficácia da vacina para o SARS-Cov-2, enquanto o vírus tem mutações para formas de menor morbilidade, e afirmar que o benefício resultou da vacinação é “Wishful Thinking”. Agora, tente-se explicar este viés a alguém que já formou a opinião “as coisas estão melhores porque fizemos vacinas”. É difícil. Muitos tentaram-no. Mas é difícil ultrapassar o “efeito manada”, quando este é comandado pelos interesses de governantes, governados e sectores económicos. Os adeptos do heliocentrismo devem ter sentido dificuldades semelhantes.

Mas a vacina para o SARS-Cov-2 é apenas um exemplo do nosso desconhecimento e tendência para encontrarmos nexo de casualidade onde apenas a coincidência impera. Não fique contudo o leitor convencido que sou negacionista em relação às vacinas. Fiz três doses. Se retrocedesse a Janeiro de 2021, e à luz do conhecimento de então teria feito tudo igual. Agora, quando vi as explicações que se deram para os que, vacinados, continuavam a contrair doença; quando a indústria farmacêutica, pressionada pela realidade, foi obrigada a alterar o discurso de uma eficácia de quase 100%; quando as doses de reforço foram efetuadas com marcas diferentes, sem que ninguém questionasse onde estava a evidência da decisão (muitos fizeram 3 doses com 3 vacinas de marcas diferentes); quando foi notório que se preparavam para fazer da vacinação uma peregrinação anual ao centro de saúde, enquanto o vírus seguia o caminho da biologia, um caminho para formas menos agressivas e de menor morbilidade. Quando tudo isto começou a ser demasiadamente evidente, aí a posição tinha de ser repensada. Aconteceu-me a mim, e a muitos que diariamente me questionam como devem responder à pressão para a toma “salvífica” da vacina anual. As pessoas não são tontas e por elas mesmo lá vão deduzindo o “geocentrismo” do discurso oficial.

E os heróis desse período?

Durante o período da pandemia, e ao contrário do que é sistematicamente propalado, nunca tivemos à frente do Ministério da Saúde alguém com discernimento sobre o que se estava a passar. Não era da área da saúde, e, apesar de ser a responsável máxima, teve o cuidado para dar o palco a outros intervenientes. Assim, colocou-se inteligentemente na retaguarda. Só que esse mecanismo de defesa é válido para culpa mas também tem de o ser para méritos.

Contudo, e neste caso, não me parece que haja grandes méritos para distribuir. Com maior ou menor dificuldade em se obter dados fiáveis que permitam perceber o que foi acontecendo pelo mundo, a ideia que se tem da pandemia pelo SARS-Cov-2, no que respeita a incidência e mortalidade, é que em 2023 estes indicadores estão bem melhores que no início, e que esta melhoria é uniforme e independente das medidas que os vários países tomaram. Se as medidas fossem assim tão importantes devíamos observar indicadores assimétricos entre os vários países, os quais deveriam variar de acordo com a “utilidade das medidas” que cada país tomou. E isso não acontece! A mortalidade apresentada em finais de 2019 e inícios de 2020, foi de 4% dos infetados. Era uma mortalidade assustadora, elevadíssima, mas desde a primeira onda pandémica não se voltou a repetir. A mortalidade têm vindo sempre em decrescendo de forma independente das medidas que localmente foram ou não foram tomadas. O que funcionou globalmente foi apenas biologia. Os vírus não são orientados por uma teleonomia maléfica. São apenas influenciados pelo meio que, sem hospedeiro intermédio e sem reservatório como se supõe acontecer com este, favorece a proliferação das formas mais contagiosas e de menor morbilidade.

Enquanto a biologia nos ia amenizando os efeitos da pandemia, Marta Temido ministra passava incólume, escudada que estava pelos “peritos do desconhecido”. Durante esse período não tivemos ministra, a gestão da crise foi feita a reboque dos “peritos” e a perceção que os governantes iam tendo da forma como a população reagia. Nunca houve ministra a liderar, o que hoje dá para perceber que não era necessário. E quando pelos finais do período pandémico já não se podia esconder e teve de assumir o cargo, o desastre foi o que se viu.

Navegação à vista

A operacionalização do plano de vacinação entre Novembro de 2020 e Fevereiro de 2021 foi uma “anedota” partidária. Um Carnaval antes do tempo, com a “cunha” e a “chico-espertice” a funcionar em pleno. Os casos foram de tal forma chocantes e as desculpas eram tão esfarrapadas que não havia outra solução que não a de mudar a direção do programa. Foi assim , por pressão do PR, esta alteração foi feita. Para a procura de heróis nesta história, o importante a relembrar é que a nomeação de Gouveia e Melo não foi uma medida proposta pela então Ministra da Saúde.

A responsabilidade política e gestão da situação pandémica foi realizada com base numa gestão do tipo navegação à vista e de acordo com o que se ia intuindo. Correu bem, mas isso deve-se ao vírus e à sua biologia. Há no meio de isto tudo alguns méritos de bom-senso e de gestão local que devem ser reconhecidos. Mas a ninguém pode ser entregue um mérito salvífico e com relação causa-efeito, como aliás, Inês Pedrosa e outros sugerem, que não seja à biologia e à evolução benevolente que o vírus SARS-Cov-2 teve. Não aceitar isso e procurar heróis para promover hostes partidárias ou listas de seguidores em “abstinência de palco” é insistir numa conceção “ptolemaica” na gestão da pandemia pelo SARS-Cov-2.

Todos nós na vida temos algo em que nos destacamos, ou que desempenhamos menos mal. Gouveia e Melo demonstrou ter qualidades na gestão do programa de vacinação. Já quando lhe é pedido para opinar sobre outros temas, ou dizer o que pensa, ficamos com a impressão de que a chefia da “Task Force” foi o seu “ponto de Peter”.

Para a outra suposta heroína, para a Drª Marta Temido, pode ser que a Presidência da Câmara de Lisboa seja um cargo adequado. Nada nos garante que o princípio de Peter não possa ter um mecanismo invertido, e que na gestão de um município se sinta como “peixe na água”. Mas dado os antecedentes seria mais avisado começar por uma câmara municipal mais pequena, digamos, uma com menos de 1000 habitantes? Há que privilegiar a prudência nestas coisas. De qualquer forma se a quiserem candidata à câmara municipal de Lisboa, por mim tudo bem, eu voto no Porto.