Fui educada para acreditar que tudo era possível. Vezes sem conta ouvi a minha mãe dizer, «se pode ser imaginado, pode ser feito». Também por isto, brincava com rigor ao Espaço 1999, com as minhas colegas, no intervalo, no recreio.

Fui uma empenhada Dr.ª Helena Russel, de 9 anos, com um intercomunicador em pedra calcária e visor desenhado a cores – visor que me arruinou as canetas de ponta de feltro da Carioca porque na primeira tentativa, a guache, só consegui borrões. No entanto, graças a este intercomunicador, os telemóveis não me apanharam de surpresa. Uma das minhas funções era averiguar as misteriosas doenças que alienígenas disfarçados de pessoas e/ou atmosferas estranhas traziam. Tal qual um corona vírus. Outra das funções era namorar com o Capitão John Koenig, mas pouco, porque como o colégio era feminino os devaneios românticos tinham uma natureza secundária. Como toda a gente que esteve na Base Lunar Alfa sabe, usava-se fato espacial e andava-se em passos muito lentos e antigraviticamente leves quando se saía da base ou da nave Eagle One para o exterior. A Space X tem anos e anos de atraso, nem sequer aterraram na lua.

O pensamento da minha mãe provava-se irrefutável quanto mais se completava: ainda que tudo pudesse ser feito, nem tudo era recomendável fazer. Isto é, por muito que eu quisesse salvar a vida de Allan, nem que fosse a toque de antigas técnicas terrenas de vudu, o consegui: acabou por ter de morrer quando a colega que o desempenhava chumbou naquele ano lectivo. A morte era, no Espaço 1999, uma tragédia inevitável.

No seguimento de «tudo o que pode ser imaginado pode ser feito, mas nem tudo é recomendável fazer», em caso de dúvida surgia o «vê o que faz uma pessoa que admires muito». Isto não incluía raciocínios do género «adoro matemática, deixa-me lá ver o que fez o Unabomber…». Era mais aconselhado algo do tipo «deixa lá ver o que o Dalai Lama ou o Papa ou outro Nobel da Paz dizem disto». Porém de olhos bem abertos, uma vez que até a igreja, em pleno século XX, tinha tido dificuldade em perceber a existência de um plano de extermínio cuidadosamente desenhado para o povo judeu. E era aconselhável prestar atenção a mais do que a uma voz de referência. Mais. Poderia ser um sinal de escolha acertada quando opositores, ou defensores de princípios diferentes, se juntavam a favor, ou contra, algo comum. Afina, até Churchill e Roosevelt se aliaram a Estaline para derrotar o nazismo.

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A questão torna-se perversa quando pode ser tratada pelo avesso. Quando algo que nos parece excelente, e dentro de um futuro à Espaço 1999 como esta matusalemania promotora da saúde, nos começa a parecer exacerbada e uma ponte para outra coisa. Quando suspeitamos de que daria uma imensa felicidade àqueles a quem não admiramos de forma alguma, como aos eugenistas de Hitler, já para não falar do próprio. É que parece que estou a vê-los. A ouvi-los:

– Mein Fuhrer, sem querer interromper o seu delírio de total erradicação das sub-espécies humanas, venho trazer uma receitinha para dar longa vida às SS e imortalidade a Vossa Senhoria e à sua digníssima amada Eva, tão bem baptizada, pois neste novíssimo Éden que previmos, em condomínio fechadíssimo, será a primeira das mulheres num recomeço adâmico, mas sem que algum deus menor se atreva à expulsão.

Depois de tão superlativa intervenção, está mais que visto, que qualquer pessoa de juízo, mesmo que anteriormente entusiasmada com a ideia do prolongamento da vida com qualidade de vida, se poria a gritar «matem-me já!» numa voz de fazer inveja à maravilhosa Bartoli.

Ora isto é desagradável. Eu também queria viver mais uns aninhos com saúde. Até sigo o trabalho de Peter Attia, de David Sinclair, as experiências de Bryan Johnson, e tenho vindo a alterar progressivamente os hábitos menos saudáveis. Mas mesmo dentro do espírito das infinitas possibilidades jamais me ocorreu pensar ou agir no sentido de favorecer o transumanismo. Depois da genética, o interface homem máquina e a eternidade garantida pela substituição de peças. Enquanto isto, fenómenos tidos como nobres durante séculos, como a arte e a literatura e a música, são simulados pela IA ou passam a ser tratados como comportamentos desviantes de um cérebro que não foi higienizado. Mais importante, a excelência torna-se performativa e não a aplicação da ética. Afinal, a biodiversidade, que deveria ser abrangente, não se aplica às diferenças entre seres da mesma espécie. A única diferença tolerada – e depois dos regimes fascista e comunista, o woke tem sido a melhor escola de intolerância – é entre «nós, os que temos poder, e os outros que não o têm, nem têm capacidade para o ter e, por isso, no-lo acrescentam».

Depois da uva sem grainha, o ser humano sem espinha.

O Admirável Mundo Novo, de Huxley, é já a seguir.