Há um esforço da gente woke para rejeitar essa designação, para fingir que o wokismo não existe e que é apenas uma criação fantasmagórica da direita mais reaccionária. Esse esforço de dissimulação e de ludíbrio é perfeitamente visível em Portugal, em França e noutros países ocidentais e eu já tive ocasião de escrever sobre ele pois o wokismo existe, é facilmente identificável e, no que à memória histórica diz respeito, tem mesmo um programa de acção política, um programa reivindicativo, com metas muito bem definidas e assumidas.

Onde poderemos vê-las? Em vários locais, nomeadamente no site BUALA, um portal criado em 2010 pela activista Marta Lança que tem como um dos seus objectivos a criação de um corpo de referências de textos fundamentais sobre temas pós e descoloniais, e que, ao longo dos anos, tem dado espaço e voz a quem seja simultaneamente woke e africano ou africanófilo, de activistas como Mamadou Ba a académicos como António Pinto Ribeiro. Nesse site, a propósito da realização do IV Encontro de Cultura Visual – Reparações, recentemente realizado no Porto, explana-se o programa woke sobre reparações históricas em Portugal, “nas suas múltiplas vertentes”. Que “vertentes” são essas? Ei-las, nos exactos termos e pela ordem em que o site BUALA as apresenta:

  • Pedidos de desculpa pelas atrocidades do colonialismo e pela prática da escravatura em larga escala;
  • Implementação de políticas afirmativas (através de quotas étnico-raciais no acesso à universidade e aos lugares de decisão nas estruturas);
  • Revisão das narrativas históricas e, consequentemente, dos curricula (através da inclusão de narrativas, sujeitos históricos e artistas até agora excluídos da narrativa oficial);
  • Devolução de objetos saqueados;
  • Descolonização do espaço público (através do desmantelamento de estátuas racistas e a memorialização às vítimas da Escravatura);
  • Recuperação de paisagens e apoio às comunidades dilaceradas pelo extractivismo;
  • Perdão de dívidas odiosas e pagamento de indemnizações.

Tudo o que a extrema-esquerda tem feito neste âmbito nos últimos anos, desde a contestação a estátuas e monumentos à crítica a certos manuais escolares, decorre deste programa político de “reparações” por antigas injustiças ou violências, e ganha mais sentido e significado à sua luz. Alguns dos objectivos desse programa têm sido frontalmente assumidos, como é o caso do ponto 1, isto é, da exigência de pedidos de desculpas pela prática da escravatura. Outros foram durante muito tempo disfarçados, escondidos, nomeadamente o ponto 7 que remete para o pagamento de indemnizações.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Avisei, logo em Maio de 2017, que o recebimento de indemnizações era o objectivo último destes activistas de extrema-esquerda. Nessa altura e nos anos seguintes nenhum deles se deu por achado. Pelo contrário, para não espantar a caça, todos fingiram que não se tratava disso e apontaram para outras questões: o ensino, os pedidos de desculpa, etc. Mas os anos passaram, o pudor inicial também, e a coisa aparece agora preto no branco no ponto 7 do programa woke: “perdão de dívidas odiosas e pagamento de indemnizações”.

Digamos que essa parte mais material do programa reivindicativo será a mais difícil de atingir por mexer no orçamento do Estado e no bolso dos contribuintes. Mas há outras partes, imateriais, que parecem ao alcance dos activistas. Uma delas ameaça fortemente a História. Há dias, o historiador João Paulo Oliveira e Costa escreveu no seu mural de Facebook que “o dito wokismo é, na sua essência, uma subversão da História. Alimenta-se da deturpação anacrónica e de incontáveis omissões. Em regra, é promovido por elites académicas apoiadas por sectores da comunicação social e do próprio sistema político (…). O wokismo é, sem dúvida, um combate contra a História. A perigosíssima tentativa de alterar a memória colectiva em proveito de uma certa elite”.

Não podia estar mais de acordo com o meu colega. Peguem, por exemplo, no ponto 3 do programa woke. O que pretende ele? Alterar as narrativas históricas e, consequentemente, os curricula dessa disciplina escolar. Como? O ponto é explícito: “através da inclusão de narrativas, sujeitos históricos e artistas até agora excluídos da narrativa oficial”. Ou seja, o que importa é introduzir — e a martelo, se necessário for — outras narrativas para dentro daquilo a que chamamos História. Não interessa aos woke se essas narrativas que pretendem inserir no ensino da História são verdadeiras ou falsas, ou se os sujeitos históricos que querem ver incensados são reais ou meras ficções. Esses detalhes não os preocupam nem atrapalham. O que querem é pôr nas páginas dos manuais escolares a versão que gostariam que fosse verdade e que, muitas vezes, não passa de mero mito ou de ideologia política. Ora isto é o contrário do que a História deve ser. A História é crítica e global. Os historiadores recolhem as recordações dos que viveram no passado, comparam-nas entre si, confrontam-nas com documentos e vestígios desse passado, e afastam o que é falso, na procura da verdade. Por norma, os woke acham que a verdade é um escrúpulo de gente conservadora, um dispensável fait divers ou um empecilho e dano colateral da sua luta política.

Vivemos tempos de pesadelo que importa perceber e combater. É errado pensar que o wokismo é apenas uma moda passageira e inócua. Não o é. Veio para ficar e para tentar perfurar e demolir as mais sólidas paredes da cultura ocidental. O governo do PS não terá perdão se, correspondendo às pretensões woke, alterar o ensino da História, ajustando-o ao gosto dos activistas; ou se aceitar e permitir o desmantelamento de monumentos e estátuas; ou se, numa palavra, ceder ao programa woke de reparações históricas. Não poderá alegar que o desconhecia, quando ele é, agora, explícito e claro como água pura. E o PSD, ainda que na oposição, também perdão não terá se persistir na indiferença sobranceira com que tem olhado para tudo isto, como se estes confrontos culturais não lhe dissessem respeito nem ao país.