Por muitas voltas que se dê, o ressentimento sempre foi um sentimento poderoso na política. Até há relativamente pouco tempo, tínhamos dois tipos de casos em que a sua existência era incontornável: nas relações entre os estados e nas guerras civis. No primeiro caso, a tipologia estava identificada. Conflitos armados ou outras formas de humilhação internacional (pública) ficam na memória coletiva das populações de um estado. E na devida altura, são exploradas (ou não) pelos respetivos líderes para gerar sentimentos de união nacional e legitimidade interna para tomar decisões internacionais.

Por exemplo, a Rússia de Vladimir Putin evoca muitas vezes a humilhação de que foi alvo pelo Ocidente no pós-Guerra Fria não só para criar um sentimento de causa comum entre os russos, mas para ter apoio em decisões externas mais assertivas, como as invasões da Geórgia e da Ucrânia. Da mesma forma, o nacionalismo chinês alimenta-se profundamente da animosidade relativamente ao Japão. Como relata Richard McGregor, “No ocidente asiático, a guerra e a história nunca foram resolvidas politicamente, diplomaticamente ou emocionalmente”. O ressentimento passado continua a ter uma presença importantíssima no presente.

Já nas guerras civis, o ressentimento é uma arma poderosa de arregimentação, mas também é a emoção que, se não for contida, tende a provocar as maiores tragédias humanas. Houve diversos casos nos anos 1990, com o fim da Guerra Fria a descongelar conflitos de ressentimentos profundos. Todos nos lembramos do Ruanda, como o primeiro grande murro no estômago em matéria de genocídio. Mas a vizinhança europeia também não saiu incólume: os conflitos dos Balcãs deram origem a terríveis episódios de limpeza étnica que espero que se mantenham muitos anos na nossa memória coletiva. Para ver se não há tentações outra vez.

Aliás a memória é fundamental não só para a manutenção do ressentimento, mas também para que o ressentimento seja ultrapassado. Embora já vá sendo esquecido – vezes demais para o meu gosto – o projeto europeu foi, e é, acima de tudo, uma tentativa de ultrapassar ressentimentos nacionais e ideológicos que nos levaram a duas guerras fratricidas. Em suma, o ressentimento é uma emoção política que, quando controlável, tem um potencial político que pode ser direcionado para um resultado positivo (o de tentar ultrapassar e superar o que nos separou no passado) ou negativo (o uso da emoção para um fim político que prejudique terceiros). Mas quando descontrolado, tem um profundo potencial destrutivo.

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Já que falamos em Europa e construção europeia, convém lembrar que a democracia liberal, a tese política que sustenta os estados ocidentais, tem no seu centro a tentativa de controlar “paixões” corporativas que destruam a paz social. As constituições dos estados consagram direitos e liberdades para todos por igual, sem olhar às diferenças de cada indivíduo. Em teoria, independentemente de qual for o conceito de cada contrato social, o facto de sermos simultaneamente indivíduos (sendo as nossas diferenças respeitadas) e termos oportunidades semelhantes (nunca são iguais porque o mundo não é perfeito) seria um forte incentivo à diluição do ressentimento. E, nas últimas décadas, pensámos que tínhamos conseguido, com a consagração da liberdade e do pluralismo como valores centrais das nossas sociedades. Estávamos enganados.

Duas razões essenciais explicam o nosso erro. Aliás, melhor dizendo, as duas razões são as faces internacional e nacional (nacionais) da mesma moeda. O nosso sistema de valores entrou em crises sucessivas – já lá vamos – até chegarmos a um momento em que, ou reformamos qualquer coisa, ou o ressentimento, que tanto nos esforçámos por combater, volta a tomar conta das nossas sociedades de forma determinante.

Do ponto de vista internacional estamos a passar aquilo a que se poderia chamar uma “crise da universalidade”. Convencemo-nos nos anos 1990 de que estávamos num momento histórico em que todos os seres humanos seriam iguais em direitos, liberdades, tipo de regime político e económico. E quando alguma coisa não estava certa, lá iam as democracias liberais “consertar”, pela força, se necessário. As opiniões públicas não só aplaudiam, como exigiam muitas vezes aos seus governos intervenções humanitárias que salvassem vidas alheias e distantes.

Não há como contrapor moralmente este argumento de que, num mundo ideal, todos temos direito ao mesmo. Todos temos direitos inalienáveis. Mas a realidade sobrepôs-se. Nenhum estado, ou conjunto de estados, por mais poderoso que seja, tem a capacidade de impor uma forma de vida. Ou de socorrer todos os conflitos do mundo. E as mesmas populações que há duas décadas apoiavam estas tentativas de repor os direitos humanos são aquelas que hoje, cansadas de tanta guerra pela paz sem resultados práticos palpáveis, exigem que se descanse da paz dos outros. E que, de preferência, as vítimas das guerras que fomos tentar acabar – a Líbia é o melhor exemplo – ou os mais pobres dos destroços das guerras em que participámos – como as dos Balcãs – não venham para o nosso continente. De dispostos a salvar o mundo passamos, pois, a ressentidos relativamente aos que foram salvos.

O que nos leva ao outro lado da moeda – os estados que eram democracias consolidadas e cujo regime está agora em risco, provocado, nomeadamente, por forças não liberais que têm usado a própria democracia para instaurar regimes menos livres (Hungria, Polónia, Roménia) ou para eleger forças políticas antiliberais, antieuropeias, antiglobalização. Os casos europeus são tantos – além de outros estados importantes fora da Europa – que mais valia enumerar aqueles em que ainda não foram eleitas forças de extrema esquerda e/ou extrema direita.

Focando-nos na Europa – até porque cada caso onde o populismo antiliberal se estabelece tem um contexto específico – o continente passou por cinco crises nos últimos dez anos. Em primeiro lugar, a crise económico-financeira que degenerou numa segunda, a crise de dívidas soberanas de alguns países (2009), testando a solidariedade, um dos pilares normativos centrais do projeto de integração. Não passámos o teste. A austeridade, as divisões (ressentidas) entre países devedores e doadores e o aparecimento e sucesso eleitoral de partidos de extrema esquerda nos estados em dificuldades, demonstrou que esta coisa de um por todos e todos por um é mesmo só para momentos de prosperidade.

Respirava-se um bocadinho melhor quando em entra em força a terceira crise (2014-2015), a dos migrantes e refugiados. Mais uma vez, a solidariedade falhou: os estados como a Grécia e a Itália viram-se a braços com uma quantidade enorme de migrantes vindos do norte de África, as fronteiras europeias a leste cheias de refugiados da Síria e da Líbia e de migrantes dos Balcãs. Recomeça o ressentimento, desta vez não (só) contra as instituições europeias, mas também contra o “outro” estrangeiro que, devidamente instrumentalizado pelos partidos de extrema-direita, se torna um incómodo intransponível. Partidos como a AfD – o partido de extrema direita alemão, que não tinha existência política desde a II Guerra Mundial – ou os Democratas da Suécia – daqueles países do Norte onde sempre pareceu haver dinheiro para um estado social inesgotável – tornam-se forças políticas com um número considerável de lugares nos Parlamentos. O mesmo vai acontecendo um pouco por toda a Europa.

As populações europeias passam a temer pela sua segurança física e económica, pela islamização da sociedade. Adensa-se (sem data bem definida) uma quarta crise. Uma crise de identidade. O estado social implementado no pós-guerra tem sucesso suficiente para que a classe média se alargue e a classe trabalhadora passe a ter melhores condições de vida. A esquerda moderada fica órfã de causas e volta-se para um novo tipo de desigualdades – a das minorias. A sua defesa (justa, aliás) vai crescendo até que se torna, perante o empobrecimento da classe média e o crescimento exponencial de migrantes, uma questão de ressentimento. Afinal, pensam as opiniões públicas, a classe política defende os “outros” e não me defende a mim?

A resposta a esta pergunta tem sido a de castigar duramente os partidos de esquerda moderada; muitas destas forças políticas tradicionais foram reduzidas à insignificância em eleições recentes. Já a direita, ainda que vá sobrevivendo, também já teve melhores dias. Esta é, aliás, a última crise, porventura, a mais grave: é uma crise institucional e, de certa forma, ideológica. A Europa, até há tão pouco tempo o garante da nossa estabilidade, quis impor uma espécie de pensamento único – somos todos europeus, não precisamos das nossas nacionalidades para nada – mas nos momentos de crise não soube responder aos cidadãos. Os partidos políticos nacionais procuraram novas fidelidades e envolveram-se demasiado nas suas próprias causas (e muitas vezes nos seus próprios interesses pouco claros) e deixaram de ouvir o cidadão comum. Em consequência de tantas crises seguidas e sem resoluções à vista, as populações foram à procura de quem expressasse os seus receios, de quem lhes prometesse uma solução fácil para problemas complexos. Foram à procura de quem desse voz ao ressentimento acumulado de perdas reais e percecionadas. Estavam à sua espera partidos extremistas, xenófobos, antiliberais, antieuropeus.

Afinal, quando há vazios na ordem política, o que se instala é o ressentimento e quem lhe dá voz.

E agora? Precisamos de reflexões e reformas. De reconhecer que não há universalismos só porque queremos e que a prosperidade, a solidariedade e a ordem – sempre, sempre com liberdade – se constroem e precisam de manutenção permanente. Precisamos de reformas nos partidos políticos tradicionais (Macron já mostrou que novos partidos moderados são demasiado fáceis de desfazer) e de um novíssimo debate sobre a União Europeia. Menos técnico, mais político. Menos idealista, mais pragmático. Onde as identidades nacionais tenham cabimento. Já houve tempos em que a ideia de exportar a democracia era muito popular. Agora a popularidade deve recair sobre a ideia de defender a democracia. Antes que ganhe o ressentimento e os partidos extremistas que lhe dão voz. E não temos muito tempo. É que as eleições europeias são já em maio de 2019.