Os vinte anos do euro estão a ser legitimamente assinalados como um sucesso. Desde logo, porque a moeda europeia já sobreviveu duas décadas — contrariamente às previsões iniciais de inúmeros distintos economistas. Além disso, é inegável que se tornou uma moeda de referência que é utilizada num espaço económico frequentemente definido como o segundo maior do mundo. Mas, os festejos não devem ignorar os custos políticos que a chamada “moeda única europeia” já produziu — e que podem vir a tornar-se ainda mais evidentes nas próximas eleições para o Parlamento europeu, em Maio.

Para encurtar uma longa história, os custos políticos do euro estão patentes no desmoronar dos sistemas político-partidários clássicos dos países do sul da Europa (com excepção, até à data, de Portugal). Em Espanha, Grécia e Itália esse desmoronamento é patente. Mas não deve ser esquecido que também está a ocorrer em França.

Basicamente, está em causa o que sempre esteve, desde o início do euro: deve ele ser entendido como um elemento definidor da União Europeia ou, em alternativa, deve ser apenas interpretado como um projecto voluntariamente aceite por alguns — mas não necessariamente todos — os países membros da UE?

A diferença pode parecer ténue. Mas não é. Assenta numa diferença fundamental entre dois entendimentos distintos do próprio projecto da União Europeia. De um lado, temos uma visão da UE como embrião dos Estados Unidos da Europa. De outro lado, temos uma visão da UE como espaço de colaboração entre estados-nação soberanos que aceitam partilhar alguns, mas seguramente não todos, aspectos da sua soberania.

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Venho argumentando há pelo menos vinte anos que a visão federalista é utópica e que se arrisca a fazer despertar os demónios adormecidos dos nacionalismos agressivos europeus — o que está hoje de facto a acontecer sob os nossos olhos incrédulos. Mas também tenho argumentado que a defesa dessa errónea utopia é legítima. Por outras palavras, muitos europeus erroneamente acreditam na utopia federalista e, em democracia, têm toda a legitimidade para o fazer. Em democracia, a errónea utopia federalista pode com toda a legitimidade ser proposta e, eventualmente, até ser preferida, desde que voluntariamente, por algumas nações europeias. Mas, seguramente, não será preferida por todas as nações europeias — como hoje está particularmente visível no crescimento eleitoral dos partidos euro-cépticos.

A grande questão não está — paradoxalmente, à primeira vista —  em obrigar a UE a escolher entre uma visão federalista e uma visão não federalista. Em bom rigor, a grande questão está precisamente em evitar que essa escolha tenha de ser feita colectivamente e de forma irreversível. Porque, se e quando tiver de ser feita colectivamente e de forma irreversível, essa escolha vai dividir de novo as nações da Europa. E, se não me falha a memória, o objectivo fundador da Comunidade Europeia era precisamente evitar novas divisões fatais entre as nações da Europa.

Este entendimento flexível do projecto europeu — por vezes chamado “Europe à la carte” ou “Europa a várias velocidades” — está consagrado na prática, embora nem sempre reconhecido em teoria. É devido a essa flexibilidade que nem todos os países membros da UE aderiram ao euro, nem ao chamado “espaço Schengen”, para citar apenas dois exemplos maiores. (Em rigor, esse entendimento flexível deveria também consagrar uma cláusula de saída ordeira do euro, à semelhança do que já parcialmente acontece com a cláusula de saída da própria UE).

Este entendimento flexível da UE era tradicionalmente defendido sobretudo (embora não exclusivamente) pelo Reino Unido. Por vincadas razões históricas (relacionadas com a sua dimensão marítima e a ancestral soberania do Parlamento nacional), os britânicos nunca encararam a hipótese de fazer parte de uns hipotéticos  “Estados Unidos da Europa”. Por isso, o Reino Unido permaneceu fora do euro e sempre defendeu vários “opting out”, incluindo não fazer parte do “espaço Schengen”.

Infelizmente, os britânicos optaram por sair da UE. A grande questão não está hoje em saber como será efectuada essa saída (ainda que este tema não seja obviamente irrelevante). A grande questão está em saber quem no futuro irá assumir no seio da UE a defesa de um entendimento flexível do projecto europeu, um entendimento que seja compatível com um legítimo “patriotismo razoável” (para usar a feliz expressão do norte-americano William Galston). Tenho argumentado que seria do “interesse próprio esclarecido” da Alemanha desempenhar esse papel moderador na UE. E creio que, em parte, já está a fazê-lo — mas este tema fica para uma próxima crónica.

De momento, o ponto a sublinhar é que a União Europeia precisa de uma voz céptica e moderadora, depois da saída do Reino Unido. Se ninguém proporcionar essa voz, é de temer que os  partidos populistas radicais continuem a crescer e a desalojar os partidos demo-liberais clássicos. Infelizmente, este fenómeno não é novo. Como alertaram insistentemente Edmund Burke e Alexis de Tocqueville, as culturas políticas inflexíveis geram recorrentemente a escolha enganadora entre Antigo Regime e Revolução.