Na guerra a primeira vítima é a verdade. Cada lado da contenda só tem direito a conhecer uma, a do seu bando, e no final só restará a versão dos vencedores. Até há uma semana qualquer europeu que quisesse estar meio informado conseguiria, sem grande dificuldade, aceder às duas verdades em contenda na Ucrânia. Entretanto, a UE impediu o acesso dos cidadãos aos meios de comunicação estatais russos, a cadeia Russia Today (RT) e a agência noticiosa Sputnik. A justificação oficial é que são veículos de propaganda do estado russo. Não sendo falso, o motivo porque realmente se proíbem é porque a União Europeia entrou em guerra. Na guerra a primeira vítima é a verdade, cada lado da contenda só tem direito a uma.

O grande problema da União Europeia é que não foi feita para disputar guerras. Apesar disso, o sonho da extensa burocracia de Bruxelas e da intelectualidade pan-europeia de possuir uma política de defesa comum” (eufemismo do mundo moderno para estratégia militar) e um exército único encontrou na causa ucraniana uma quase-unanimidade para um causus-belli entre quase todos os habitantes dos estados membros. É uma oportunidade demasiado boa para não ser aproveitada. Mas a União Europeia embarca nesta aventura sem um plano porque, até há uma semana, os responsáveis políticos sabiam, ou pensavam saber, não existir capacidade de vencer um conflito com a Rússia, e essa era a ideia que transmitiam à OTAN (o mais próximo a um exército a que a UE pode aceder neste momento) dentro da influência que têm sobre a estratégia da aliança militar. Não sem os Estados Unidos que não têm nenhum interesse em enfrentar a Rússia.

Quando ainda havia duas verdades em disputa, percebíamos que a tensão na Ucrânia resultava da incompatibilidade entre dois expansionismos, o da OTAN e o da Rússia. Isto não é necessariamente correcto, mas é como cada lado apresentava o seu opositor: como um imperialista expansionista. É inegável que, por um lado, a OTAN estendeu a admissão ao clube a Leste, inclusivamente a algumas das antigas repúblicas soviéticas, e por outro, que a Rússia conseguiu inverter o recuo territorial do seu império que, em 1989, chegava às portas de Viena. Isto sucedeu aproximadamente desde o momento em que Putin chegou ao poder em Moscovo, o que também explica muita da popularidade de que goza no seu país e do temor que influi nos outros. Mas não significa que, nas cabeças dos geoestrategas que dividem o mapa-múndi numa sala de guerra, um equilíbrio tácito entre as duas partes não possa ser obtido no xadrez diplomático. Quando a URSS implodiu, era oportuno e relativamente fácil para a OTAN (quer dizer a América) ocupar esse vazio. Até porque se o objectivo militar era proteger os EUA e a Europa Ocidental, é melhor ter a primeira linha de defesa no Vístula que no Elba, e muito melhor no Dniepre que no Vístula. Excepto se o Dniepre for como Uma Ponte Longe Demais e, aparentemente, era.

Quando os russos recuperaram a iniciativa, procuraram ter o que toda e qualquer nação com aspirações a potência quer ter: um conjunto de territórios ou estados vassalos que lhe permitam ter um espaço de segurança e influência entre as suas fronteiras e as dos seus adversários, oponentes ou inimigos, dependendo do momento político. É pouco provável que os geoestrategas ocidentais não reconhecessem essa necessidade do seu adversário russo, afinal de contas falam a mesma língua. Tacitamente, esse colchão estava informalmente reconhecido e era constituído pelos territórios das antigas repúblicas soviéticas da Geórgia, Bielorrússia e Ucrânia, bem como pela Finlândia que, em tantos anos de Guerra Fria, nunca fez parte da OTAN. Se no mapa este arranjo era agradável, na realidade, foi exequível na Geórgia através da violência e na Bielorrússia recorrendo ao suborno. Só que pelo menos metade dos ucranianos não tinham intenção de cumprir com o papel que as grandes potências lhes destinou e, em 2014, à custa de muito sangue, suor e lágrimas, conseguiram derrubar na Praça Maidan o governo pró-Moscovo que se recusava a assinar um acordo comercial com a EU (e o estado de emergência decretado por esse governo). Essas pessoas, grosso modo os habitantes da metade ocidental do país, queriam simplesmente ser europeus, contra os desejos tanto da Rússia como da própria Europa que teve que reconhecer emocionada a vontade daqueles eslavos e acomodá-la, na medida do possível, na sua agenda política. Depois da retaliação russa, que ocupou directamente a Crimeia e, informalmente, a parte oriental do Donbas, o desejo de ser europeu alastrou também a grande parte dos cidadãos do lado oriental do país.

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O tempo corria agora contra a Federação Rússia e, apesar de os governantes europeus cumprirem com a sua parte do acordo tácito e protelarem a entrada da Ucrânia nos dois clubes que lhe permitiriam estar mais a salvo das aspirações do seu vizinho, a situação converteu-se num foco de tensão permanente. Uma solução negociada para o conflito poderia ter sido o reconhecimento da soberania russa na Crimeia (que apesar de tudo foi russa até há bem pouco tempo) e das regiões de maioria russa a oriente. Só que essa solução tem demasiadas semelhanças com a Crise dos Sudetas para poder ser contemplada por um Ocidente sensibilizado pela resistência ucraniana de uma maneira que os checoslovacos em 1938 não conseguiram capitalizar. E a contrapartida óbvia, a adesão do resto da Ucrânia à EU e à OTAN, frustrava o propósito russo de manter estas organizações o mais longe possível das suas fronteiras.

Uma possível solução no papel era uma espécie de pacto Molotov-Ribbentrop invertido onde a Rússia ocuparia a Ucrânia para depois entregar metade à Alemanha, perdão, à UE. Em 1939 a partição da Polónia não impediu uma guerra dois anos mais tarde, mas de momento daria as garantias necessárias para uma resolução geoestratégica, isto é, nos mapas, satisfatória. Os europeus poderiam estender justificadamente o cartão de membro a metade da Ucrânia que sobrasse enquanto que os russos teriam um osso para digerir durante um tempo, antes de arriscar outro confronto que desta vez teria que ser directo e muito mais incerto.

E ou muito me engano ou foi a isso que assistimos durante um par de meses com as ameaças tépidas de sanções por parte de norte-americanos e europeus e que culminou com a entrada de tropas russas na Ucrânia, numa missão de ocupação que esperavam sem sobressaltos, num país cujo governo implodiria com a visão dos tanques russos. Foi essa a mensagem que os especuladores (etimologicamente aqueles que vêem mais longe) transmitiram nos mercados financeiros. Depois da queda abrupta das bolsas com a notícia da invasão, houve uma corrida às compras que encetaram uma rápida recuperação, com a convicção de que, o mais tardar no domingo, os russos estariam no poder e Zelenskyy num avião a caminho de um confortável exílio, generosamente oferecido pelo Presidente Biden.

Só que as pessoas têm essa irritante mania de não fazer o que os planificadores antecipam e, em vez de tomar a estrada propositadamente deixada livre para o Ocidente, muitos ucranianos, a começar pelo próprio exército, decidiram ficar e lutar. E, o que é pior para a geoestratégia, ganhar a guerra já que cada dia que resistem estão mais próximos da vitória. Esta reacção totalmente inesperada trouxe consigo uma onda de solidariedade no Ocidente que se consubstanciou em milhões de bandeirinhas ucranianas em perfis de redes sociais. É aqui que os problemas para a UE começam. Uma coisa era que milhares de europeus criassem brigadas internacionais para ir combater nas planícies ucranianas outra muito diferente é por bandeirinhas em perfis que, em última análise, é uma infantilidade. Mas para os políticos actuais, mais interessados em surfar a opinião do momento que em liderar pelas convicções próprias, foi suficiente para abandonar o plano inicial que, convenhamos, era eticamente reprovável mas realista, por uma improvisação que, sendo maravilhosa do ponto de vista dos princípios, pode ter um resultado desastroso. E de boas intenções está o inferno cheio.

Como a União Europeia não tem exército decidiu atacar por onde pode, quer dizer, através de sanções económicas que, ao contrário do que era esperado por todas as partes, foram muito mais além daquelas medidas de cara à galeria que os governos europeus tinham pensado declarar. Isso uma vez mais é perceptível no comportamento dos mercados financeiros, que vêem que estas medidas são um tiro no pé da prosperidade, não só dos russos, mas também dos europeus. Nos últimos dias geralmente caíram, para apenas dar meia-volta de cada vez que há um rumor de conversações de paz entre as partes. Quer dizer, os preços de mercado, na medida em que representam projecções da prosperidade futuro, anseiam por um acordo…

Para que se perceba as reticências dos líderes europeus, o primeiro país a endurecer as sanções foi o Reino Unido que, não por coincidência, é dos que está mais longe da Ucrânia, tem algo a que se pode chamar um exército próprio (coisa de que a maioria dos outros países europeus carece) e um governo a precisar de uma dose de popularidade adicional, depois dos reveses porque tem passado. Os Estados Unidos vão relutantemente marcando o ritmo da mesma música para não destoar, mas não se lhes vê vontade de dançar o mesmo baile que a Europa, que entrou em modo apoio total à Ucrânia. Mas eu pergunto, se o plano era mandar armas porque é que antes se empenhavam tanto em não as mandar? Se o plano era aprovar medidas económicas tão restritivas que iam lançar a Rússia no caos económico e potencialmente a sua população no desemprego crónico, porque não ameaçar sem ambiguidade com essas consequências antes? Não teriam sido essas medidas muito mais dissuasórias da invasão Russa à priori que à posteriori? Se a isto acrescentarmos a proibição da difusão da informação oficial russa no continente e a expulsão das suas equipas das competições desportivas, medidas sem qualquer impacto estratégico, podemos deduzir que a Europa declarou guerra total à Rússia sendo que, por guerra total entendo uma guerra em que o objectivo é derrotar não só a ofensiva militar como destruir a economia que financia essa guerra. A propaganda é um braço indispensável da guerra total pelo que quem pense que neste momento não está a ser sujeito a ela por parte dos governos europeus, está a ser irrealista.

Como disse Mike Tyson, toda a gente tem um plano até que leva um murro na boca, e os russos parecem ter acordado para essa realidade na Ucrânia. Mas um mau plano ainda é melhor que nenhum plano porque pressupõe uma base a partir da qual se pode ajustar a acção à realidade. O nenhum plano obriga ao constante improviso. E é isso ao que assistimos dentro da União Europeia, numa inesperada escalada da retaliação que não estava nos planos dos políticos e que pode, obviamente, acabar mal.

O plano europeu, elaborado à pressa, parece ser obrigar os russos a derrubar o seu governo despótico obrigando a população a passar pela penúria económica e convertendo o país num pária do concerto internacional das nações, como se de uma Coreia do Norte se tratasse. Boa sorte com isso. A possibilidade de Putin, ou algum pior que venha depois dele, alimentar-se do ressentimento dos russos contra a Europa, como sucedeu na Alemanha de entre-guerras é bastante real e até provável. Se o governo russo conseguir resistir ao choque das sanções económicas e, convenhamos que nalguns casos a simples passagem do tempo vai estabilizar a situação, as possibilidades de a Europa vencer a contenda reduzem-se à capacidade da vanguarda ucraniana em resistir, e à vontade de os Estados Unidos defenderem uma Europa que, muito provavelmente, está neste momento a interferir directamente na doutrina de política externa norte-americana, delineada por Kissinger mas sempre vigente, de se manter mais próxima da Rússia ou da China que estes dois entre si. É óbvio para quem acompanhe minimamente a política norte-americana, que este é o turno dos russos. Os líderes europeus estão a jogar um jogo perigoso para o qual reconheciam até há uma semana não possuir os meios. Por muito que me alegre de cada vez que os ucranianos repelem um ataque, julgo que é importante perceber onde é que nos estão a meter. Não se ganham guerras com bandeirinhas nos perfis, os sacrifícios vão ser reais. A América, se ainda assim apoiar a Europa, por valorizar mais as considerações políticas, económicas, ideológicas e culturais, que as de natureza puramente geoestratégica, vai-se certificar que desta vez são os europeus quem paga a conta.