No momento em que, em Bakhmut, as tropas russas parecem ter sofrido uma derrota táctica significativa, e se instala a discórdia entre os diversos protagonistas russos na região, tudo aponta para que a Ucrânia se esteja a preparar para uma contraofensiva militar com alcance estratégico, esgotada que parece estar a ofensiva russa de inverno.

Esta ofensiva russa foi um verdadeiro fiasco, com avanços mínimos, à custa de uma enorme atrição de meios humanos e materiais, e propiciou à Ucrânia, que se agarrou tenazmente ao terreno, a oportunidade de potenciar as fraquezas russas, derrotando sucessivos ataques e degradando de forma significativa o potencial das forças russas.

A defesa de Bakhmut tem sido um paradigma desse esforço. Os ucranianos mantiveram até agora as linhas de defesa e os canais de reabastecimento, e os lentos avanços russos, rua a rua, casa a casa, levaram à paulatina exaustão do seu potencial ofensivo, perdendo, para além de elevadas quantidades de material, cerca de 100 mil homens, entre mortos, feridos, prisioneiros e desaparecidos, como estimam fontes americanas.

As condições meteorológicas não foram também favoráveis à ofensiva russa, e os solos lamacentos persistiram bastante para lá do Inverno, factor bastante limitativo para manobras mecanizadas ou blindadas, as únicas que podem obter resultados decisivos, pela velocidade e possibilidades de avanço para a profundidade. Basicamente os russos atacaram com forças apeadas, atirando vagas de homens mal treinados contra os pontos fortes ucranianos, após massivas preparações de artilharia.

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Isto nem sequer é novo, trata-se da táctica habitual dos russos, só possível quando se dispõe de um enorme stock de munições de artilharia. Mas acontece que esse já não é o caso, a Rússia exauriu perigosamente os seus arsenais e não tem capacidade para os regenerar à medida das necessidades de combate, tendo estado a comprar desesperadamente munições a países como a Coreia do Norte e Irão. Neste momento a grande superioridade de fogo já não está garantida, os carros de combate e viaturas de combate de infantaria já não são esmagadores face ao potencial ucraniano, pelo que a Rússia se vê na contingência de passar à defensiva em todo o Teatro de Operações.

A Ucrânia passou o inverno em linhas defensivas, e nesse período não só esgotou a ofensiva russa, como lhe causou enormes perdas, fixando tropas russas e realizando contra-ataques limitados, ganhando tempo para formar e treinar unidades blindadas e mecanizadas, equipadas com moderno material ocidental, prontas para desencadear, a todo o momento, operações ofensivas em larga escala, que moldem o campo da batalha a seu favor.

Estas operações irão ter início a qualquer momento.

Se as forças ucranianas lograrem uma penetração significativa nas defesas russas e conseguirem manter o ímpeto, explorando rapidamente o sucesso em profundidade, seja em direcção ao Mar de Azov, seja em direcção à Crimeia, envolverão inevitavelmente as estáticas defesas russas, poderão capturar grandes quantidades de soldados e reconquistar largas faixas do território.

No cenário mais favorável, quebrarão a continuidade territorial da faixa terrestre que liga a Rússia à Crimeia e, com a concomitante neutralização da ponte de Kersch, colocarão a Rússia perante a iminência de uma derrota catastrófica que a deverá, racionalmente, forçar a negociar em situação de fragilidade, podendo até surgir um cisne negro em Moscovo que remova Putin do poder.

Se falharem, o Ocidente provavelmente começará a ter de encarar o facto de que a existência da Ucrânia como país soberano é um objectivo duvidoso e vai ter de acomodar-se à ideia de uma Rússia hostil e ameaçadora. Nestas circunstâncias o apoio à Ucrânia definhará rapidamente e os países europeus terão de investir copiosamente nas suas capacidades militares e industriais, para dissuadir a galvanizada ameaça russa junto das suas fronteiras.

Este é, portanto, um momento decisivo na guerra.

O tempo disponível para a contraofensiva não é especialmente generoso, tendo em conta que já vamos adiantados na Primavera.

Até agora, Kiev conseguiu manter a ambiguidade quanto às datas e locais da esperada ofensiva, pelo que, tudo leva a crer que o princípio da surpresa está assegurado.

Defesas russas mal construídas, equipamentos militares antigos e soldados mal treinados e desmoralizados irão brevemente enfrentar, nas trincheiras, unidades treinadas e equipadas por países ocidentais, constituídas por soldados convictos e empenhados na defesa do seu país.

A recente fuga desordenada de elementos da 72ª Brigada de Infantaria Motorizada (russa) da região de Bakhmut, pode ser um indicativo do que aí vem.

É que, exceptuando a falta de superioridade aérea, as sussurradas carências em defesa aérea, e a ausência (até ver, já que se o Reino Unido parece estar a começar a fornecer misseis Storm Shadow) de meios de longo alcance que batam a profundidade russa até aos 300 Km, as vantagens parecem estar agora do lado ucraniano e o tempo corre, favorável mas célere, durante largos meses, até ao regresso do rigoroso inverno ucraniano.

Se a ofensiva ucraniana não tiver sucesso, não só dará à Rússia uma nova oportunidade, como é possível que a ajuda militar ocidental comece a esmorecer.

Para evitar isso, a Ucrânia precisa de recuperar território algures em Donetsk, Kherson, Luhansk ou Zaporizhzhia. Isto é vital porque depois disso, as atenções dos EUA estarão inevitavelmente voltadas para a política doméstica que moldará as eleições presidenciais de 2024.

Se as linhas russas se aguentarem, o Kremlin terá conseguido congelar o conflito, mantendo-se firme na Ucrânia, reequipando e regenerando as suas forças, à espera que o apoio ocidental se desvaneça, na miragem de mudanças políticas significativas em alguns dos países que mais galhardamente apoiam o esforço militar ucraniano, especialmente os EUA, cujos interesses no Pacífico, vis a vis a competição estratégica com a China, podem obrigar a um paulatino afastamento do teatro europeu

Trata-se de uma grande ameaça para Ucrânia, já que os EUA forneceram mais ajuda militar do que todas as outras nações juntas.

E também para a Europa. Se a ajuda americana se for desvanecendo, ou a Europa reforça a sua ajuda, algo que parece improvável neste momento, ou terá de encarar a vitória russa, agora a controlar todas as terras até ao Mar Negro, e galvanizada para continuar a prosseguir a sua ambição imperialista, doravante reforçada por mais território, maior base industrial e sobretudo maior potencial demográfico.

E isso levará inevitavelmente a maiores perigos e maiores gastos.

Estamos pois, ucranianos e ocidentais, num daqueles momentos decisivos da História em que tudo está em jogo.