Excepto por um almoço com vários comensais, há uma dúzia de anos, não conheço João Miguel Tavares (JMT). Sei quem é, e leio-o com frequência. Suponho que ele saiba quem sou. Para o caso, não importa. O caso é o discurso que JMT proferiu no Dez de Junho, a cuja comissão organizadora presidiu. Entre parêntesis, noto que, desde a origem, a data propicia sucessivos velórios institucionais que pretendem celebrar os “valores” da “pátria”. De acordo com as tutelas, os “valores” mudam. A “pátria”, cerimoniosa e balofa, é o que se arranja. Em 2019 não foi diferente.
Diferente foi o discurso, que por uma vez – que me recorde – suscitou resmas de comentários exaltados por esse país afora. E por uma vez – estou seguro – levou a que eu o ouvisse. A esquerda detestou o discurso e naturalmente concluiu que JMT é fascista. A “direita” dividiu-se nas apreciações e iniciou um fascinante debate sobre se JMT é um liberal sincero ou um socialista infiltrado. E eu achei o seguinte.
Em primeiro lugar, as coisas de que discordo de JMT. Discordo de JMT quando declara uma “honra” ser “o primeiro filho da democracia a presidir às comemorações do Dez de Junho”: no máximo, é um facto – até por aquilo que JMT acrescenta de seguida, não é uma “honra”. Discordo de JMT quando atribui a uma imaginária competência caseira o inegável desenvolvimento das últimas quatro décadas: em parte porque esse desenvolvimento já leva umas cinco décadas, em parte porque o dito apenas saiu da cepa torta, se saiu, a expensas do contribuinte alemão. Discordo de JMT quando afirma que “os portugueses” lutaram pela liberdade em 1974, e pela democracia em 1975, e pela integração na CEE, e pela “moeda única”: se alguns lutaram por essas maravilhas, demasiados lutaram, e continuam a lutar, contra elas. Discordo de JMT quando inverte a ordem dos factores e trata os seus compatriotas como vítimas de uma situação que os próprios alimentam: a apatia da população não é o resultado inocente de um “sistema” perverso, mas a subscrição activa, talvez entusiástica, do “sistema”, e o combustível necessário à perversão. Discordo de JMT quando afirma que “os portugueses são capazes de coisas extraordinárias desde que sintam que estão a fazê-las por um bem maior”: salvo em períodos ou culturas de fanatismo, ou a troco de boa remuneração, ninguém, nem os portugueses nem os suecos nem os micronésios, faz seja o que for de extraordinário por razões que transcendam a dimensão individual ou, em sentido lato, familiar. E discordo profundamente de JMT quando pede aos políticos que a) nos proponham um caminho; b) “nos dêem alguma coisa em que acreditar” e c) “ofereçam um objectivo claro à comunidade que lideram”: 300 mil caracteres não chegariam para enumerar as minhas objecções à dependência de políticos, para proporem caminhos ou estrelarem um ovo.
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