Todos os preconceitos assentam na ignorância, terreno ideal para o fanatismo. Os preconceitos antirreligiosos, anticlericais ou anticatólicos não são diferentes. Um exemplo revelador é a petição sobre a questão da nomeação de uma ponte pedonal no município de Lisboa com o nome do respetivo Patriarca. A dita conseguiu entusiasmar, até ver, mais de 17.000 fiéis. É menos que as Jornadas da Juventude, mas não é nada. A questão prática foi resolvida pela modesta recusa do próprio Dom Manuel Clemente, patriarca emérito de Lisboa, e importante historiador e intelectual católico. Mas há três pontos que vale a pena deixar claro relativamente a esta petição.

Portugal não é um Estado laico

O dito abaixo-assinado afirma confiante que a “suposta laicidade do Estado deveria ser suficiente para acautelar que a atribuição de toponímia não fosse feita com a escolha de nomes do Clero”. A redação poderia ser melhor, mas o “suposto” acaba por ser profético. Como um artigo do Observador bem documenta, com citações da legislação pertinente, Portugal não é definido pela constituição ou a lei como um Estado laico.

Na Europa, o único Estado constitucionalmente laico – diz o artigo 1º da sua lei fundamental de 1958 – é a França. Fora da Europa a maioria dos que seguem o mesmo modelo são antigas colónias francesas, como a Costa do Marfim. Cabe perguntar se também haverá que descolonizar este laicismo à francesa, ou se se abre uma exceção.

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Na maioria das democracias pluralistas na Europa e na América, generalizou-se, isso sim, no último século, o modelo de Estado não-confessional. É o que temos na letra da nossa Constituição.

Claro que se pode definir Estado laico como mero sinónimo de Estado não-confessional. Mas não me parece que seja boa ideia, porque isso tende a misturar um fenómeno amplo e diverso com um modelo muito específico de separação “à francesa” com grandes restrições à prática religiosa. Ora o modelo francês dos idos de 1905 é uma exceção e não a regra, e evoluiu muito, mesmo em França. Na Europa até são mais, na verdade, os Estados constitucionalmente confessionais do que os Estados constitucionalmente laicos. Além da Grécia e Malta, algumas das mais antigas democracias europeias, como a Inglaterra, Dinamarca ou Noruega continuam a ter uma Igreja de Estado. E esse também foi o caso da Suécia, até 2000.

É, aliás, bizarro a dita petição evocar a Lei da Liberdade Religiosa de 2001 que desenvolve os princípios orientadores da relação do Estado português com as confissões religiosas. Ela nunca refere a laicidade do Estado. Se fosse um princípio central nessa relação certamente o faria. Remete sim como princípios fundamentais nessas relações para: a não-confessionalidade, a separação, a igualdade, mas também a cooperação com as confissões religiosas, tendo em conta critérios objetivos como a sua representatividade no país. É de bom senso. O compromisso de uma democracia pluralista com a liberdade de expressão e organização não pode ser apenas para ateus. E o bem-estar e prosperidade dos cidadãos não é assegurado apenas pelo Estado. É por isso que há muito que foram abandonados, mesmo na França laica, os excessos separatistas e anticatólicos da separação agressiva de 1905, imitados em Portugal, com péssimos resultados, em 1911.

Mesmo que fossemos laicos como a França

Aparentemente os redatores e signatários da dita petição estão convencidos de que onde “há laicidade a sério” não se dá nomes de clérigos católicos a locais públicos. Ora, na França constitucionalmente laica há inúmeros exemplos de nomes católicos em ruas, praças e pontes por todo o país, e muitos deles posteriores a 1905. Dou apenas um exemplo, que notei numa visita a Paris. No coração da capital francesa fica a Ilha da Cité que é unida por uma ponte ao Quartier Latin. Qual o nome da dita ponte? Petit Pont Cardinal Lustiger, arcebispo de Paris entre 1981-2005. Perguntarão alguns, mas quem foi o político clerical culpado por essa violação da sacra laicidade em pleno coração de Paris? A ponte foi assim nomeada, em 2013, pelo município parisiense, presidido pelo socialista Bertrand Dellanoe. Na França, como em Portugal, a maioria das pessoas, de esquerda e de direita, percebe que o pluralismo político também passa pelo pluralismo toponímico.

Não podemos discriminar

Nada pode desculpar adultos e figuras de autoridade que abusaram da sua posição relativamente a menores. Durante décadas, séculos, a Igreja Católica, os Estados, as famílias, outras instituições e confissões não souberam lidar com este crime. Eu próprio fui crítico de algumas reações de responsáveis da Igreja Católica, elogiei outras. Mas não haverá nomes de ruas, praças e pontes que resistam se estabelecermos como critérios para dar ou manter nomes de locais públicos: primeiro, não serem personalidades católicas; segundo, serem infalíveis no combate ativo à pedofilia ou noutra questão séria qualquer.

E deixei o mais grave, se levarmos a sério esta petição e a lermos com atenção, para o fim. Estes mais de 17.000 signatários fizeram um apelo público à violação do princípio democrático basilar da igualdade e da não-discriminação. A Constituição Portuguesa que tanto dizem prezar é muito clara: ninguém pode ser discriminado por causa da sua religião. Esta petição requer, em nome de uma suposta laicidade que nem sequer na França é entendida desta forma, que alguém que pertença ao clero católico não possa ser objeto de homenagem pública. É um apelo a estabelecer uma norma e uma prática discriminatória. Se quisermos ser piedosos talvez possamos admitir que a maioria dos signatários não teve a noção plena do que estava apressadamente a assinar, e que a redação tenha sido apressadamente infeliz. Mas, se assim foi, devem deixar isso claro. E tendo em conta a gravidade desta exigência e o seu amplo eco público, os principais responsáveis políticos deveriam deixar claro que não consideram esta posição aceitável ou legal.