Foi há 50 anos, no dia 14 de Março de 1972, que estreou nos Estados Unidos The Godfather, de Francis Ford Coppola, a adaptação ao cinema de um romance de Mario Puzo. Puzo nascera em 1920, em Hell’s Kitchen, Manhattan, filho de imigrantes napolitanos, analfabetos e pobres, e o bairro seria cenário da agitada mocidade de Vito Corleone, o protagonista da sua saga, já muito vendida e traduzida quando da estreia do filme.

Seria, no entanto, a tradução em imagens de Copolla do mundo dos Corleone de Puzo que daria à saga o som e a fúria de um mundo maior, habitado por um elenco inigualável: Marlon Brando, Don Vito Corleone, o grande chefe da família e do bando; Robert De Niro, o jovem Don Vito do Padrinho II; e Al Pacino, o filho mais novo de Don Vito, Michael Corleone, que, pela “força do destino”, acaba por ser o herdeiro e o sucessor do Padrinho e o protagonista da saga, da juventude até à morte. E o que poderia não passar de uma boa história das famílias mafiosas italo-americanas na luta pela sobrevivência e pela hegemonia territorial e financeira nas geografias do crime da América transformou-se numa crónica dos avessos do “sonho americano” e da América do século XX; numa história da geopolítica e da geoeconomia atlantista do crime organizado; num tratado sobre o poder e as suas formas; e, mais do que isso, num tratado sobre a natureza humana.

As origens da Máfia

O etnólogo Giuseppe Pitre, pioneiro dos estudos antropológicos sicilianos, explica que, em meados do século XIX, no bairro de Borgo, em Palermo, o adjectivo “mafiuso” era sinónimo de elegante, corajoso e empreendedor. Havia, entretanto, outros usos para o termo, que designavam os que resistiam à intimidação ou impunham a sua vontade pela força. A palavra “máfia” e a expressão “mentalidade de máfia” eram ainda usadas para definir a insularidade siciliana, a afirmação do que era próprio, a resistência ao que era alheio e a desconfiança em relação às autoridades instituídas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Esta semântica reflectia uma reacção ao poder central, considerado estrangeiro, e a afirmação de um modo siciliano de pensar, sentir e resistir, traduzido em formas pré-modernas de lealdade clânica e familiar. A Omertà ou lei do silêncio e a recusa de colaborar com as autoridades judiciais e policiais do poder central eram práticas características dos “homens de honra”, que valorizavam as tradições de raiz insular siciliana e privilegiavam os seus códigos costumeiros, à margem da lei escrita.

A resistência, por vezes violenta, às tentativas do governo italiano do Risorgimento de impor a centralização, vieram alterar o significado de Máfia e mafioso. A vitória dos católicos regionalistas em 1868-69 fez crescer as tensões autonomistas contra aqueles que queriam fazer dos sicilianos “espanhóis, piemonteses ou alemães”. Depois da Comuna de Paris de 1871, juntou-se à preocupação unitária o medo da subversão socialista, que o discurso do poder associou ao mundo do crime, a um mundo de práticas iniciáticas e secretas, viveiro de resistências violentas.

A partir daí, Máfia siciliana ou Camorra napolitana passaram a ser sinónimos do mundo do segredo e do crime. No entanto, para os mafiosos e para as comunidades locais a versão continuava a ser outra: a “Cosa Nostra” era uma associação de “uomini d’onore”, que, à margem das corruptas autoridades centrais, assegurava a justiça aos mais débeis e aos mais pobres. Em algumas narrativas, chegava mesmo a apresentar linhagens antigas, medievais, de romântica resistência à opressão do poder central, memória de sociedades governadas por regras e rituais semelhantes aos maçónicos ou carbonários, como os Beati Paoli.

Em nome da Justiça

O livro de Puzo começa num tribunal americano, em que os autores da violação e agressão de uma jovem são absolvidos devido à corrupção do sistema. O pai da vítima, Amerigo Bonasera, protagoniza a primeira e inesquecível cena de O Padrinho, ao queixar-se a Don Vito: “I allways believed in America”… mas a justiça da América falhara e, por isso, era ao poder paralelo do “homem de honra”, Don Vito, que Bonasera apelava, pedindo auxílio e reparação.

Para “corrigir o sistema”, Don Corleone vai castigar os abusadores. Como irá conseguir, através de uma “proposta irrecusável” a um renitente produtor de Hollywood, que o seu afilhado tenha o papel que deseja para salvar a carreira.

Esta justiça rápida e expedita – ao modo dos reis das lendas e narrativas – uma justiça que pode dar tudo e tirar tudo, inclusive a vida, substituindo-se às injustiças e inoperâncias da justiça central, estará talvez na base do fascínio do público americano e mundial pelo universo da Máfia e pela figura do Padrinho.

Sendo, desde a fundação, uma República constitucional, os Estados Unidos não tiveram reis, absolutismo, ou sequer ditadores. Não têm, por isso, experiência histórica real de um poder absoluto como o que Don Vito tem dentro da sua família, do seu clã e do mundo mafioso. Um poder que o Padrinho exerce com sabedoria e prudência, numa comunidade com rígidos códigos não escritos, uma comunidade tribal, composta pela família em sentido estrito e pelos “capos” e “soldados” que, com os respectivos agregados familiares, se acolhem ao seu munus. Hierarquia patriarcal, disciplina, formas e ritos quase litúrgicos regulam a vida desta comunidade. Os Corleone são uma das cinco famílias, com os seus cinco ”Dons”, do mundo do crime organizado italiano de Nova Iorque: os Corleone (Don Vito), os Barzini (Don Emilio), os Tataglia (Don Phillip), os Stracci (Don Anthony) e os Cuneo (Don Otilio).

O Padrinho começa em 1945, no imediato pós-guerra, com Michael Corleone de volta a casa para o casamento da irmã como herói. É também então que surge “o Turco”, Virgil Sollozo (Al Lettieri), com a proposta de uma nova área de negócio. Solozzo andou pela Turquia e o tráfico de droga, o negócio que quer trazer para a América com o apoio do Padrinho, encontra a firme oposição de Don Vito, que contrapõe à “ilicitude” da nova actividade a “licitude” dos negócios tradicionais – a protecção, as mulheres, o jogo. A droga destrói a sociedade e pode destruir a América e Don Vito, tal como o seu protegido Amerigo Bonasera, acredita na América. Por isso, a família Corleone ficará de fora.

A idade do ouro da Lei Seca

A “Prohibition” foi o grande motor económico do crime organizado na América. Antes da “Lei Seca”, introduzida pela 18ª Emenda à Constituição de 1919, com entrada em vigor em 1 de Janeiro de 1920, havia gangues de irlandeses, italianos, judeus, polacos e outros imigrantes que se dedicavam ao crime em pequena escala. A Proibição, ao ilegalizar o hábito ou o vício socialmente transversal na população americana masculina, fez com que o contrabando, o fabrico e a distribuição de álcool se tornassem um negócio milionário, gerando grandes mestres do crime, como Lucky Luciano, Al Capone, Bugsy Siegel ou Meyer Lansky, que ganharam e movimentaram fortunas, com as quais corromperam políticos e polícias. Passavam, assim, a dominar e a corromper a seu favor o “sistema corrupto” que, com desilusão, tinham encontrado na “Terra da Oportunidade”, realizando, entretanto, o seu próprio “sonho americano”. Quando acabou a Proibição, em 1933, com FD Roosevelt, os bandos e os chefes sobreviventes transferiram as suas quadrilhas e recursos para os Casinos de Las Vegas e da California, lugares de jogo e de prostituição de luxo.

A série Boardwalk Empire, com Steve Busceni, é sinal do continuado interesse da filmografia americana e do público por esses tempos e esses modos. Um clássico foi The Public Enemy, de William Wellman, com James Cagney e Jean Harlow. Nos anos 30, Cagney especializou-se em fitas de gangsters, contracenando com Humphrey Bogart em Angels with Dirty Faces, The Roaring Twentiesou Each Dawn I Die. Estaline, que era um cinéfilo praticante, intercalava Chaplin, de quem era devoto, com os gangsters de Cagney, de quem também era dedicado fã.

“O melhor filme de sempre”

Embora no film noir europeu haja antecedentes e paralelos, o crime organizado é um tópico cinematográfico essencialmente americano. Mas se de Once Upon a Time in America, de Sergio Leone, a Miller’s Crossing, dos irmãos Cohen, ou de The Goodfellas, de Martin Scorcese,  a Reservoir Dogs, de Tarantino, não faltam obras importantes que vemos e revemos e onde sempre descobrimos  coisas novas, por que é que Os Padrinhos continuam no topo das preferências? Cinquenta anos passados sobre a saga que abre com a memorável cena de Amerigo Bonasera, beijando a mão a Don Vito, para terminar com o “capo” Clemmenza curvado perante Michael na mesma reverência e homenagem, o culto dos Padrinhos continua.

Segundo o próprio Coppola, a força do filme está em ser “uma história de um rei e três filhos”, “a tragédia do poder” num contexto de sucessão. Na trilogia, não faltam alusões a situações trágicas, contrastes dialéticos entre liberdade e necessidade ou entre clã, família e Estado; e há sacrifícios de inocentes, traições fraternais, maldições geracionais, escolhas e o preço das escolhas, vidas e mortes ditadas por uma aceitação ou por uma recusa. No último filme da saga, os pecados dos pais são espiados nos filhos, e Michael Corleone, à procura de perdão, redenção e respeitabilidade, de modo institucional, quase farisaico, é castigado com a morte da filha.

O conservadorismo dos Corleone e da saga de Coppola está centrado em Don Vito e em Michael. Don Vito teve uma ascensão difícil ao poder e à relativa respeitabilidade; é realista e conservador no uso dos instrumentos do poder e mede a violência. As “propostas irrecusáveis” que o celebrizam, as máximas que vai soltando, a gestão das influências, as opiniões sobre a família, sobre as mulheres, sobre o poder, sobre a América, vão chocando e seduzindo os espectadores. A sua razoabilidade ao propor a paz entre as famílias depois de o terem tentado matar e de lhe matarem o filho mais velho – Sonny (James Caan) –, a sua ligação funda e discreta a Michael, com aquela cerimónia dos grandes afectos entre pais e filhos, tornam-no, apesar de tudo, “estimável”. E para o cobrir, para lhe rezar pelos pecados, lá está a esposa devota, Dona Carmela Corleone, que vai à missa todos os dias pedir por aquele marido que ela, “esposa e mãe” tradicional, sabe sobejamente necessitado de perdão.

Michael é diferente; e talvez por ser um recém-chegado à chefia do mundo do crime, onde não queria nem pensava entrar, revela-se surpreendentemente impiedoso. É um herói que une a astúcia da raposa à força e brutalidade do leão e que renuncia a tudo: à vida normal que o seu estatuto de filho de pai rico e de herói da guerra lhe podiam garantir, à família e à mulher Kate (Diane Keaton), à tranquilidade, à segurança.

Os manuais maquiavélicos estão cheios destes exemplos, tirados de uma cultura política italiana de nação poliárquica, fragmentada, dividida, de estatalidade tardia, propiciando a organização de grupos, de máfias, de pequenos bandos com códigos identitários que separam radicalmente o “nós” do “eles”. E o “nós” são os clãs, as famílias, o sangue. Porque embora o negócio seja o fim e as traições e agressões sejam justificadas como ossos do ofício, “nada de pessoal, só negócio”, a verdade é que, enquanto outros gangsters, como Solozzo e Hyman Roth, ou polícia corrupto McCluskey, actuam essencialmente por “lucro “empresarial”, os Corleone, Vito e Michael, regem-se sobretudo por espírito de família. Embora não esqueçam o ouro que lhes confere o poder, para eles o sangue é a justificação primeira para usar o ferro. Por isso matam quem, não sendo da família, vai contra ela, e também quem, sendo da família, a trai.

A ascensão de Michael é a de um herói trágico, como foi a de Vito, ao matar o tirano Don Fannucci ou ao vingar a morte do pai, assassinado pelo cacique local, Don Ciccio. Michael salva o pai na clínica e mata Solozzo e McCluskey para o proteger. Depois, faz a viagem até às raízes sicilianas, a Corleone, onde se exila, perde a mulher, volta para suceder ao pai e liquida os seus inimigos num sangrento e sacrílego São Valentim. No fim, torna-se chefe e tirano, galga todos os obstáculos e pune todos os traidores, até o irmão, Freddo.

Na tragédia grega temos enredos assim; no Inferno de Dante, há quem, por menos, esteja em lugares piores; em Shakespeare, nas History Plays, há destas tragédias, dilemas e sangrentos percursos.

A Inglaterra, a Merry England que conheceu a Revolução e o regicídio século e meio antes da França, e que, mesmo na Restauração, com Carlos II, o Merry Monarch, se vingou dos regicidas, enforcando-os e esquartejando-os, tem uma história com sangue, mistério, terror, revolução e contra-revolução, sempre ao abrigo da lei e pela lei.

A América, não. Na América, liberal desde a fundação, estas violências e este sangue nunca foram tutelados pela lei. Talvez por isso apareçam em força no Cinema, arte americana por excelência, em amálgamas de drama, ópera, comédia, tragédia, crime e castigo, com primordiais nobres heróis e vilões dos mais baixos instintos à solta na modernidade. A mistura parece repetir e congregar três milénios de imaginação e reprodução da natureza humana; uma natureza humana que, ainda que milenarmente repetida, não cessa de nos surpreender, qual ensanguentada cabeça de cavalo entre lençóis de seda.

Stanley Kubrick, falando do Padrinho I, disse que o filme de Coppola era “possivelmente o melhor filme de sempre” e o que tinha o melhor elenco.

Cinquenta anos depois da estreia, a ascensão e queda dos Corleone, acontecida na América do século passado, consegue espantar-nos e encantar-nos como se tivesse estreado ontem – e acontecido há horas, há milénios ou num qualquer futuro. A saga podia passar-se na Roma dos césares, na Inglaterra da Guerra das Rosas ou no Japão dos Tokugava e ter sido contada por Tácito, Shakespeare ou Kurosawa. Desta vez quem a contou foram Puzo e Coppola, acolitados por um gangue de “capos” e “soldados” de excelência, ao som da música de Nino Rota.