Escrevo a partir de uma sucessão de momentos que vivi nestes últimos dias e de imagens que jamais conseguirei apagar da memória. Uma mãe e um pai unidos, muito abraçados, destroçados pela morte do seu filho. Amorosamente inclinados um sobre o outro, os dois debruçados sobre o corpo do seu menino de vinte anos, quase vinte e um. Ajoelhados ao seu lado ainda como que a precisarem de conversar com ele antes de o deixarem ir. Muitas vezes comunicaram assim com ele, em casa, sem palavras, mas isso era quando a vida parecia a todos cheia e eterna. Quando havia tempo para tanta coisa que pensavam fazer juntos. Agora tiveram que se despedir dele sem colo nem gestos, apenas lágrimas. Abraçados um ao outro, num tempo dolorosamente demorado, partilhado com a família e os amigos.

Dizem que a morte de um filho é a única dor que o tempo não cura nem apaga, mas também dizem que morre cedo quem os deuses amam. Nunca saberemos os ‘porquês’, porque não nos pertence saber tudo sobre a vida e a morte, só temos a certeza de que nenhuma vida se mede pelos anos vividos, por mais breve que seja. Há velhos, muito velhos, que se apagam sem terem conseguido deixar uma verdadeira marca no mundo, assim como há novos muito novos que morrem e o mundo fica cheio, inundado da sua vida. Também por isso nunca saberemos ao certo como contar os anos, para compreendermos se foram muitos ou poucos. Para quem fica, a ausência dos que partem parece insuportável e a vida aparentemente perde o sentido, mas o testemunho de outros pais que perderam os seus filhos interpela por essa mesma capacidade que revelam de permanecer de pé, honrando a memória dos seus filhos, tentando ser em cada dia como eles gostariam que continuassem a ser.

Nietzsche dizia que quem tem uma razão para viver, suporta quase tudo, e para muitos pais em luto a razão para viver passa a ser a existência de outros filhos. Ao mesmo tempo, passa por manter intacta e viva a memória do filho que perderam. Por amor a quem, mesmo sem querer, lhes provoca a maior dor, são capazes de voltar a casa, de olhar para a realidade de um quarto vazio, de tocar as suas roupas e os objectos que lhe pertenceram. Tudo feito num tempo em bolha, desfasado do tempo mundano, em que precisam de toda a coragem que humana e legitimamente se espera nos dias verdadeiramente difíceis. Ter uma razão para viver permite suportar os ‘como’ da existência. A força interior do ser humano pode elevá-lo acima das suas circunstâncias, mas é necessária muita bravura e muitos apoios. Todos os que têm à sua volta nunca serão demais para devolver o sentido e as forças.

Quando a fortaleza interior de uma mãe e um pai se desmoronam e tudo por dentro fica em ruínas, como fazer para os ajudar a recuperar, para que se mantenham vivos para a família que os espera em casa, bem como para os amigos e os outros? Como contribuir para que consigam voltar a encarar o mundo, a ser funcionais, a retomar as rotinas e até o trabalho?

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Viktor E. Frankl, que sobreviveu a quatro campos de concentração, perdeu a mulher e o filho, para além de quase todos os familiares e amigos, escreveu um dos livros mais lidos de sempre. “O Homem em Busca de um Sentido” fala dessa espécie de ‘existência nua’ dos que foram despidos e despojados de tudo o que lhes pertenceu. O autor fala da realidade-real dos campos de concentração nazis, mas a sua narrativa também serve de metáfora a quem se sente abandonado, atordoado, agredido e desamparado pela morte súbita de um filho. Pela perda inesperada de alguém muito querido para quem não houve tempo de despedidas.

A dor física nunca é a que mais dói. Frankl experimentou a dor física, a dor emocional e a dor mental e, por isso, sabe que a agonia mental é a mais dilacerante de todas. A agonia mental provocada pela injustiça de um acontecimento dramático ou a perda de alguém muito querido e muito novo, mais o absurdo de tudo. O absurdo e o sem-sentido cavam muito fundo todas as dores que sentimos. Daí a necessidade tantas vezes sentida por crentes e não crentes no aprofundamento da vida espiritual. Para além de todas as crenças ou qualquer religião, a vida espiritual pode ser um caminho reparador, resgatador depois de todas as perdas.

Cito Frankl, pensando nestes e noutros pais que perderam o seu filho de forma brutal e súbita, mas também nos filhos que perderam os seus pais e em todos os que sofreram perdas irreparáveis, para que possam guardar as palavras sábias de alguém que soube por experiência própria que o amor vai muito para além da pessoa física do ser amado. Para que estas palavras façam eco e dêm esperança a quem sente que ficou sem chão e perdeu o sentido da sua vida. Para que através da intensificação da sua vida interior possam encontrar cada vez mais refúgios que os protejam do vazio e de todos os absurdos que lhes estão associados .

“Numa situação de completa desolação, quando um ser humano não pode exprimir-se em acções positivas, quando o seu único triunfo consiste em resistir aos sofrimentos da melhor maneira — de uma maneira honrada –, numa tal situação o homem pode alcançar a plenitude por meio da contemplação amorosa da imagems que recorda do ser amado”.

Resistir ao desânimo e sobreviver à maior de todas as dores pode passar pela certeza de que o amor vai muito para além da existência física da pessoa que amamos. Sto Agostinho interrogava-se: “como podem dizer que morreu quem permanece tão vivo no meu coração?” E assim termino dedicando esta simples crónica a quem sente que sofre mais do que consegue suportar e, em especial, aos queridos pais de um querido filho que morreu com vinte anos, quase a fazer vinte e um.