No passado dia 10 de março, os portugueses foram chamados às urnas para eleger um novo parlamento. O rescaldo destas eleições tem sido pautado, como aliás é norma, por discussões em torno dos mandatos atribuídos, composição do parlamento e cenários de governabilidade. A questão dos “votos inúteis”, isto é, aqueles que não serviram para eleger deputados é mencionada de passagem, não sendo tratada com a importância devida.

Em relação a este último ato eleitoral, Luís Humberto Teixeira, politólogo e criador do site omeuvoto.com, estimou que o número de votos inúteis foi de cerca de 673 mil (não contando com os círculos da emigração). O valor resulta da soma dos votos dos partidos que não elegeram nenhum deputado em cada círculo eleitoral. Isto inclui, além dos partidos que não elegeram a nível nacional, os votos no PAN (só elegeu em Lisboa), Livre, CDU, BE (só elegeram no Porto, Lisboa e Setúbal), IL (elegeu no Porto, Aveiro, Lisboa e Setúbal), Chega (só não elegeu em Bragança) e AD (não elegeu em Portalegre). O matemático Henrique Oliveira apresenta outros cálculos estimando que o número de votos inúteis foi de 1,2 milhões.

De acordo com os meus cálculos, este valor é ainda superior, fixando-se em cerca de 2,3 milhões de votos que não serviram para eleger nenhum dos 226 deputados escrutinados no território continental, Açores e Madeira. Para chegar a este valor, parto do princípio de que mesmo entre os votos nos partidos que elegeram deputados existem votos inúteis, uma consequência da aplicação do método de Hondt.

Tomemos como exemplo o círculo da Guarda, onde 85.103 eleitores elegeram três deputados. Os mandatos foram distribuídos por AD (29.033 votos), PS (27.133 votos) e Chega (15.821 votos). O primeiro partido a não eleger foi o BE (com 2,301 votos). A distribuição dos mandatos foi feita usando o método de Hondt da seguinte forma:

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O último deputado eleito pela Guarda foi o proposto pelo Chega, uma vez que nenhum dos restantes quocientes dos outros partidos supera o primeiro quociente do partido de André Ventura. Isto quer dizer que se AD, PS e Chega tivessem apenas 2.302 votos cada um, a distribuição de mandatos seria exatamente a mesma.

Da diferença entre o número de votos obtidos e o número de votos necessários, resulta o número de votos inúteis entre os partidos que elegeram. Por outras palavras, 26.731 votos na AD, 24.831 no PS e 13.519 no Chega foram inúteis. Se estes eleitores não tivessem votado, os resultados não seriam diferentes. Adicionando a estes votos os dos partidos que não elegeram nenhum deputado (10.620) temos um total de 75.701 votos inúteis, ou seja 88.95% dos votos contabilizados na Guarda.

Olhemos agora para o círculo de Viseu, onde 211.586 cidadãos elegeram oito deputados. A distribuição de mandatos foi feita da seguinte forma:

Os oito quocientes mais elevados foram obtidos por AD, PS (três deputados cada um) e Chega (dois deputados). O ADN, com 6.615 votos, foi o primeiro partido a não eleger nenhum representante. Isto quer dizer que se AD e PS tivessem apenas 19.847 votos cada um e o Chega 13.231 votos, a distribuição de mandatos não se alteraria.

O desperdício de votos foi assim de 57.079 (na AD), 38.230 (PS), 27.928 (Chega) e 29.494 nos restantes partidos, um total de 152.734 votos, ou 72.19% do total.

Aplicando este raciocínio aos restantes círculos (exceto os da emigração), temos a tabela seguinte de distribuição de votos inúteis, onde vemos que a nível nacional, quase 40% dos votos foram inúteis, sendo que a situação é mais grave nos círculos que elegem menos deputados.

Nas eleições de 2022, estimei que 1.5 milhões de votos (27% do total) foram inúteis.

Importa aqui realçar que se estes votos foram inúteis para a eleição de deputados, não o serão para o financiamento partidário, que, de acordo com o art.º 5.º da Lei n.º 19/2003, “consiste numa quantia em dinheiro equivalente à fracção 1/135 do valor do IAS, por cada voto obtido na mais recente eleição de deputados à Assembleia da República”. É assim legítimo questionar se os apelos ao voto que invariavelmente marcam as campanhas eleitorais têm efetivamente a intenção de estimular a participação cidadã ou de simplesmente aumentar as receitas dos partidos.

Em termos partidários, vemos na tabela seguinte que, entre os partidos que elegeram, o PAN foi o mais prejudicado: quase 84% dos seus votos foram inúteis; seguem-se o BE, a CDU e o Livre, com mais de 60% de votos inúteis. Registam-se também situações caricatas como o ADN ter obtido cerca de 120 mil votos, pouco mais de 10% dos resultados do Chega e mais do dobro do resultado da coligação PSD-CDS na Madeira, mas não ter elegido nenhum representante, enquanto aqueles dois partidos elegeram 48 e três, respetivamente.

Um dos corolários desta situação é uma clara divergência entre a vontade popular registada nas urnas e a composição do parlamento: a AD teve 29.37% dos votos a nível nacional, mas no parlamento tem 33.63% dos assentos; o PS, com 29.41% de votos tem 34.07% dos deputados; já a IL tem apenas 3.54% de representação no parlamento apesar de ter tido 5.21% da preferência dos cidadãos.

Entendo que este sistema tal como está montado é inaceitável, em virtude de não traduzir fielmente a vontade popular, de inutilizar milhões de votos e de dar uma importância diferente a cada eleitor conforme círculo eleitoral onde vota. As alternativas passam por reduzir o número de círculos, criar um círculo de compensação ou fundir todos os círculos eleitorais num círculo nacional único. Eu inclino-me para esta última opção, em virtude de ser o mais intuitivo e de mais fielmente representar o voto popular a nível nacional. Se já existisse um círculo nacional único nestas eleições, aplicando-se igualmente o método de Hondt, os resultados seriam os seguintes:

Continuariam a existir votos inúteis, mas menos. Adicionalmente, a diferença entre a vontade popular expressa nas urnas e a composição do parlamento seria atenuada. Acresce ainda que, de acordo com a nossa Constituição (art.º 152.º, n.º 2), os deputados “representam todo o país e não os círculos por que são eleitos”, pelo que se eliminaria também a perceção popular de que o deputado eleito por tal círculo deve defender no parlamento os interesses locais.

É minha opinião que este deveria ser um assunto prioritário do parlamento e do próximo governo, aproveitando o facto de nem PS nem PSD (os principais beneficiários do atual e enviesado regime eleitoral) conseguirem governar sozinhos e necessitarem do apoio de outros partidos que, nos seus programas, propunham uma revisão da lei eleitoral.