Apesar dos excelentes artigos já aqui publicados no Observador — com saudáveis tonalidades diferentes — sobre a notificação formal da saída do Reino Unido da União Europeia, ocorrida na passada quarta-feira, talvez seja ainda possível revisitar o tema.

A minha sensibilidade em relação ao Reino Unido é talvez conhecida. Partilho inteiramente da admiração aqui tocantemnete apresentada por João Marques de Almeida em relação à cultura política britânica. Cheguei mesmo a publicar recentemente um livro sobre The Anglo-American Tradition of Liberty: A view from Europe (Routledge, 2016) — talvez cometendo um erro de “timing”, tendo em conta que o Brexit e a eleição de Trump nos EUA tiveram lugar logo a seguir. Neste livro, procurei fundamentar a minha admiração pela tradição anglo-americana da liberdade. Como descrevo logo no início, essa admiração foi de certa forma desencadeada por uma inesquecível visita a (Sir) Karl Popper, na sua casa em Kenley, a sul de Londres, em 1988.

Nessa visita, Karl Popper (que tinha dupla nacionalidade, austríaca e britânica) falou-me longamente sobre a dívida de gratidão que todos os europeus deviam sentir para com Winston Churchill e os povos de língua inglesa — simplesmente porque eles tinham salvo a civilização europeia dos totalitarismos nacional-socialista e comunista. Popper, em rigor, alargou essa dívida a tempos mais remotos: falou do papel do Reino Unido na I Guerra Mundial, da firme oposição britânica ao golpe de estado bolchevique na Rússia em 1917, da resistência britânica contra Napoleão e, ainda antes, da resistência contra o expansionismo castelhano. Finalmente, falou-me da “revolução” liberal-conservadora inglesa de 1688, das suas diferenças cruciais com o radicalismo da revolução francesa de 1789; e sublinhou as raízes da disposição liberal-conservadora inglesa na tradição cristã da Magna Carta de 1215. Esta conversa com Popper foi, como se costuma dizer, uma “eye-opening experience”. Tenho procurado manter-me fiel ao que julgo ter aprendido com ele.

Um outro aspecto, no entanto, creio dever ser sublinhado. Em nenhum momento dessa conversa — e de muitas outras que se lhe seguiram — Karl Popper alguma vez exprimiu um sentimento nacionalista ou nativista sobre o Reino Unido. O mesmo aconteceu com (Lord) Ralf Dahrendorf — também ele de dupla nacionalidade, alemã e britânica, — que tinha sido aluno de Popper na LSE (da qual depois chegou a ser director) e que foi meu orientador em Oxford. Ambos partilhavam de uma enorme admiração pela cultura política de língua inglesa. Mas sempre a entenderam como parte da cultura política europeia e ocidental.

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Nenhum deles, alguma vez, expressou a sua disposição anglófila em oposição à cultura europeia e ocidental. Mesmo quando criticavam a cultura política continental — e isso era bastante frequente — nunca essa crítica assumiu contornos agressivos. Ambos eram cépticos relativamente à dimensão cartesiana-racionalista do projecto da União Europeia, sobretudo quando entendido como um projecto para superar o sentimento nacional e os Parlamentos nacionais. Mas ambos reconheciam na União Europeia — tal como Winston Churchill, antes deles — um nobre projecto de reconciliação das famílias europeias. Dahrendorf, aliás, (que chegou a ser Comissário europeu pela Alemanha) fazia questão de se apresentar como um “europeísta céptico”, em oposição aos “euro-cépticos” e aos “euro-emtusiastas”.

Uma das características distintivas que Popper e Dahrendorf atribuíam à cultura política inglesa era o seu cepticismo relativamente às “políticas de perfeição” (uma expressão consagrada por Anthony Quinton e Michael Oakeshott). Todos eles viam com reserva a fé racionalista na capacidade da acção política para atingir modelos de perfeição — uma fé racionalista que contraria a mensagem revelada (e, portanto, não inteiramente racionalista) judaica e cristã acerca da falibilidade e imperfeição humanas.

Para atenuar ou civilizar os efeitos destrutivos (ainda que não intencionais) dessa fé racionalista — que eles também sabiam não ser possível, nem talvez desejável, tentar abolir — Popper e Dahrendorf recomendavam uma política de gradualismo (que Quinton e Oakeshott chamaram política de cepticismo, ou de imperfeição): ensaio e erro, ajustamento gradual, abertura à variedade de tradições e de paixões, concorrência pacífica e experimentalista entre soluções diferentes, por vezes rivais.

Talvez pudéssemos — europeus continentais e britânicos — aprender alguma coisa com esta disposição gradualista da tradição europeia e ocidental da liberdade ordeira, para a qual a tradição britânica terá dado um contributo significativo. Agora que o Reino Unido optou pela saída da União Europeia, devemos respeitar essa decisão. Ela não deve ser entendida como uma saída da Europa, como aliás sublinhou a primeira-ministra britânica. Nem o Reino Unido deve hostilizar ou procurar dividir a União Europeia, nem a União Europeia deve hostilizar ou procurar dividir o Reino Unido. Como argumentou aqui Rui Ramos, podemos e devemos continuar unidos, na variedade, com espírito de compromisso e de moderação.