A discussão sobre “esquerda” e “direita” é certamente daquelas que menos interessa ao comum das pessoas, e eu serei certamente o último a censurá-las por isso. Não é que não existam bons livros sobre a génese histórica dos termos e das atitudes e até algumas boas análises dos conceitos. Mas, regra geral, a discussão tende para o ocioso, quando não para o irremediavelmente oco, com a agravante de a conversa se ver muitas vezes infiltrada por considerações que relevam de puros gestos de má-fé ou de afirmações sempre ligeiramente incómodas e excessivas de identidade pessoal. Mais vale, e de longe, ocupar o tempo com o estudo das querelas sobre a predestinação, a transubstanciação ou a eficácia da graça. Somando tudo, voa-se um bocadinho mais alto e o espírito sai da coisa mais satisfeito.

Dito isto, há um plano mais modesto em que o exercício vale talvez a pena. Ele não diz tanto respeito à essência dos conceitos quanto à sua comum utilização no que se chama o espaço público. Há, por assim dizer, um ambiente que favorece certas reacções e maneiras de ver as coisas e que revela muito em que tipo de sociedade vivemos. Não estou a pensar no discurso dos políticos, que têm, quase por necessidade de ofício, de simplificar para agirem e para justificarem a sua existência, invariavelmente ornamentada pelos mais elevados valores. Estou a pensar em criaturas mais pacatas que sentem a urgência de usarem emblemas na lapela nas suas conversas de sociedade.

Ora, no que respeita a esta última categoria, uma já longa observação mostrou-me para lá de qualquer dúvida que uma das coisas mais fáceis do mundo é ser de direita em Portugal. Não o digo, apresso-me a dizer, como quem se queixa. Pessoalmente, a atribuição do predicado não me incomoda nada, antes pelo contrário. Limito-me a constatar que os critérios que o meio ambiente põe à nossa disposição nestas matérias facilita, e de que maneira, uma tal classificação. E que isso diz muito sobre a natureza da sociedade que é a nossa.

Para ilustrar isto, dou o exemplo de três atitudes muito gerais que amplamente bastam para definir um indivíduo como sendo de direita. O carácter muito geral dessas atitudes, até pela sua natureza vaga, é propositado, porque revela o pouco que é necessário para que a identificação seja posta em marcha.

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Imagine que, quaisquer que sejam as suas convicções em relação aos vários casos particulares, adopta a atitude geral de discordar do excesso de policiamento da linguagem vigente na sociedade contemporânea. Mais precisamente: duvida dos méritos de uma sociedade em que um vasto conjunto de expressões se vêm apresentadas como sinal de intrínseca malevolência para com grupos de dimensão variável dos seus concidadãos. Não é necessário que as aprecie, e menos ainda que as use ou as queira usar. Basta desconfiar da colagem imediata da linguagem a uma intenção suposta e guardar algum cepticismo no que respeita à atribuição instantânea de uma visão do mundo repugnante a quem usa tal linguagem. Para dar um exemplo recente, acusar um indivíduo de sexismo, xenofobia e racismo por ter dito algo que apenas num universo de vigilância paranóica da linguagem pode ser apresentado como instanciando tais desagradáveis predicados. Se partilha tais reservas, o amigo ou a amiga é claramente de direita.

Um outro exemplo. Mesmo que tenha a salutar prudência de não se julgar na posse de uma teoria perfeita da sociedade, e mesmo que creia que as sociedades humanas são demasiado complexas para serem objecto de uma teoria muito limpinha e geométrica, o amigo ou a amiga extraiu da sua cabecinha, por via de alguma observação empírica, a ideia de que um peso excessivo do Estado na sociedade se revela danoso para esta. Além disso, tem na memória, pela leitura de livros que relatam alguns episódios célebres em detalhe, vários factos que abundantemente concordam com a sua limitada observação empírica. Não precisa, note, de acreditar de alma e coração nos méritos indisputáveis de uma sociedade em que o Estado se abstenha de qualquer influência na formação e na protecção dos cidadãos. Pode até (e deve, se uma opinião me é permitida) achar tal doutrina absurda. Basta que conceba a necessidade de estabelecer limites à acção do Estado (na economia, entre outras coisas) quando tais limites são necessários à preservação da liberdade individual e a um funcionamento relativamente saudável da economia. E que receie as piores consequências quando tais limites não são respeitados. Se pensa assim, se sente assim, a amiga ou o amigo é evidentemente de direita.

Imagine, por último, nesta breve lista, que não simpatiza com regimes políticos ditatoriais ou totalitários. Tal antipatia impede-o de, em nome de qualquer concepção da história, encontrar graças salvadoras num ou noutro e de conceber justificações teóricas ou práticas para o exercício da violência praticada por esses regimes sobre os seus cidadãos. Por maioria de razão, repugnam-lhe gestos de ternura e admiração por ditadores seleccionados. E não vai na cantiga do sonho e da utopia que, quaisquer que sejam as consequências, manifestam um potencial libertador que indica o futuro da espécie humana. Claramente, a amiga ou o amigo é de direita.

Dir-se-á que há gente de esquerda que pensa exactamente assim e que nenhuma fatal lei lógica obriga a que estes sentimentos sejam propriedade exclusiva da direita. Haverá, certamente. Houve no passado e não há razão alguma para que essa gente tenha abandonado o nosso planeta. Acontece, no entanto, que o ambiente presente a torna tendencialmente inaudível, ao ponto de, pelo que se pode ver e ler, todas estas persuasões se encontrarem praticamente, por estas bandas, restritas à direita. Não custa assim perceber que seja fácil ser de direita em Portugal. De direita? Mais: de direita radical.