Na sequência do meu artigo da semana passada sobre a crise no BES e da forma como o tema tem vindo a ser debatido, parece-me importante fazer alguns esclarecimentos, em especial sobre o desempenho do Banco de Portugal.

Começarei no entanto por reforçar o óbvio: nada do que possa ser concluído sobre falhas de regulação e supervisão isenta os praticantes de maus actos de gestão ou de eventuais crimes das suas responsabilidades. Discutir as falhas de regulação do Banco de Portugal no caso BES não equivale a isentar nem ofuscar a responsabilidade dos agentes directamente responsáveis pela gestão do BES. Tal como discutir as falhas de regulação do Banco de Portugal no caso BPN (entre outros) não equivale a isentar nem ofuscar a responsabilidade dos agentes directamente responsáveis pela gestão do BPN.

Feito este ponto prévio, vale a pena salientar que há padrões curiosos nas reacções aos casos BPN e BES. Os casos são substancialmente diferentes, mas em ambos houve notórias falhas de regulação e supervisão por parte do Banco de Portugal, falhas essas que tiveram graves consequências. Ora o que é curioso é que os pesos e medidas na avaliação da actuação do Banco de Portugal parecem variar em função de simpatias partidárias, de clã ou de outra natureza. Alguns dos mais inflamados e notórios críticos do ex-Governador Vítor Constâncio são hoje ferozes defensores do actual Governador Carlos Costa (um bom exemplo, para indicar um colunista que tenho em boa conta e com quem frequentemente concordo, é João Miguel Tavares). E alguns dos maiores defensores do ex-Governador Vítor Constâncio não hesitam hoje em apontar o dedo à actuação do Governador Carlos Costa.

Assinalar esta dualidade de critérios e chamar a atenção para as responsabilidades do Banco de Portugal em ambos os casos não é incompatível com o reconhecimento de que a solução encontrada para o caso BES – por decisão nacional ou por imposição europeia – é preferível à que foi seguida no caso BPN. Mas não é compreensível que se pretenda isentar de responsabilidades o Banco de Portugal. E há várias boas razões para exigir responsabilidades ao Banco de Portugal.

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A primeira diz respeito aos meios à disposição do Banco de Portugal. Como bem salienta Luís Aguiar-Conraria: “Dado que Portugal não tem moeda própria, a única função do Banco de Portugal é a regulação e supervisão do sistema bancário. O Banco de Portugal tem 1700 funcionários, quatro vezes mais que o Banco Central da Suécia, que, lembre-se, tem de gerir a sua moeda, a coroa sueca.“

É certo que não se ouviram outras vozes a alertar para os graves problemas do BES, mas é supostamente para que esse trabalho de regulação e supervisão seja feito de forma competente e eficaz que os contribuintes portugueses suportam os pesados custos associados a quase dois milhares de funcionários com elevados níveis de remuneração.

Uma segunda razão diz respeito à decisão do Banco de Portugal de manter a administração do BES em funções até ser tarde de mais. Caso se venham a provar as sérias acusações que Carlos Costa fez a Ricardo Salgado, o que fica demonstrado é que o exercício de ringfencing supostamente em curso para limitar a exposição do BES ao GES funcionou, na prática, exactamente ao contrário, com pesados custos para o país e para a estabilidade do sistema financeiro. Mesmo sem colocar em causa a boa fé da administração do Banco de Portugal, tratou-se de um grave erro de avaliação.

Em terceiro lugar, o padrão de relacionamento entre o Banco de Portugal e a CMVM em toda esta crise deixa muito a desejar, com implicações significativas para a informação ao mercado. Há ainda muito por apurar a este respeito, mas é já relativamente claro que o último aumento de capital do BES – marcado por sucessivas declarações públicas dos reguladores garantindo a solidez do banco – se processou num contexto de rápida deterioração e já no limiar da insolvência. Pior ainda, o banco continuou a ser transaccionado em bolsa quase até final de Julho, altura em que o potencial de insider trading associado a fugas de informação era já muito significativo.

Finalmente, e como quarta razão a destacar, importa recordar que era esperado que a actual administração do Banco de Portugal melhorasse as práticas de regulação e supervisão relativamente à administração anterior. Ora, foi o próprio Carlos Costa a admitir que o sistema financeiro português esteve no “fio da navalha” e na “iminência de uma crise sistémica”. Se chegar a esse ponto não constitui uma falha objectiva da regulação e supervisão, nada constitui uma falha. Note-se que não se trata aqui de pedir a cabeça de Carlos Costa (ou da sua administração), mas sim de reconhecer que as falhas de regulação e supervisão do sistema bancário e financeiro em Portugal têm, também elas, características estruturais e raízes sistémicas. Ignorá-las não é apenas errado. É perigoso.