A história é triste, encantadora e simples de contar. Todos os anos em Dezembro, Eric Schmitt-Matzen, engenheiro norte-americano de 60 anos, incarna a figura de Pai Natal para alegrar crianças desejosas de prendas e conselhos de vida. É, digamos, mais um membro do pelotão de São Nicolaus que enche centros comerciais e festas infantis. Só que, este ano, relatou à imprensa um episódio vivenciado especialmente distinto. Convocado por uma enfermeira pediátrica, foi visitar uma criança de cinco anos, doente terminal, cujo desejo último era conhecer o Pai Natal. Encheu heroicamente o peito e assumiu a missão, perante o olhar emocionado da família. Conversou com a criança. Deu-lhe consolo. E, num momento de genuína comoção, abraçou-a e sentiu-a morrer nos seus braços.

Como disse, a história é triste e encantadora. Mas sofre de um problema fundamental: é falsa. E ainda de outro problema: apesar de falsa, foi difundida abundantemente pela imprensa internacional, que não resistiu à história da “criança que morre nos braços do Pai Natal”. A mim, o assunto chegou através de um alerta lançado por Diogo Queiroz de Andrade (director-adjunto do jornal Público), na sua página do Facebook. Só em Portugal, caíram na armadilha (pelo menos) Diário de Notícias, Correio da Manhã, Semanário Sol, Jornal de Notícias, TVI 24 e SIC Notícias – ou seja, centenas de milhar de leitores e espectadores que, confiando nestes órgãos de comunicação social, tomaram como verdade uma mentira.

São estes os tempos em que vivemos. Cada vez mais informação e cada vez menos tempo para a processar e escrutinar. E, portanto, cada vez mais espaço para que as mentiras se confundam com as verdades, como aconteceu nesta história inócua que tantos jornais repetiram acriticamente. O ponto é, contudo, que tudo isto vai muito além de histórias inócuas.

Quem segue o debate público assistiu, nos últimos anos, à perda de importância dos factos, substituídos por manipulações nas redes sociais, mentiras ou apelos emocionais e afectivos – em bom rigor, o fenómeno não tem nada de novo, apesar da amplificação de Donald Trump. Como é que se chegou até aqui? Pela mesma via de repetição acrítica nos jornais, onde não se verificam fontes e se difundem com igual tratamento as verdades e as mentiras que saem do discurso político. Sim, é fácil apontar o dedo aos políticos e ao fenómeno que se convencionou chamar de “pós-verdade”. Mas isso seria não perceber que os jornalistas, primeiro, têm responsabilidades nesta situação e, segundo, têm aqui também uma oportunidade a agarrar.

A responsabilidade é simples de explicar. Se há políticos que fogem dos factos para influenciar o debate público à medida dos seus preconceitos, então é porque isso lhes traz benefícios. Se isso lhes traz benefícios, então é porque não são devidamente denunciados e desmentidos por quem, não fazendo parte do combate político e partidário, recentre o debate público nos factos. E se não surge essa denúncia atempada, então é porque os jornais – a quem se confiou essa missão de informar através dos factos (e não apenas de difundir o que acontece ou é dito) – estão hoje aquém do que deles se pede e exige: um olhar crítico sobre o discurso político, que o confronte com os factos e esclareça os leitores do que é verdade e do que é mentira.

Aceitar este diagnóstico é reconhecer aqui uma oportunidade. Com os populismos a ganharem terreno político e mediático, nunca como hoje foi tão necessário confiar em fontes de informação credíveis para orientar o debate público a partir de factos. Afinal, quanto menos rigoroso o discurso político, maior a necessidade de verificar as informações, de confrontar os políticos com as suas mentiras, de resgatar os factos para conduzir o debate público. Ou seja, os jornais são cada vez menos necessários para dar notícias (há dezenas de fontes gratuitas e a televisão a fazerem-no) e cada vez mais importantes para explicar as notícias e cruzá-las com verificação de factos e investigação. Depois de tantos anos em queda, estes perigosos tempos de populismos ofereceram aos jornais a oportunidade de se reerguerem. Saibam eles aproveitá-la.

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