A própria casa, a comunidade em que estão inseridas ou a escola, deveriam ser os locais onde as crianças pudessem encontrar segurança, mas estes são muitas vezes os sítios onde são vítimas de violência. O relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) – “Hidden in Plain Sight” (Escondido à vista de todos) -, apresentado esta quinta-feira em Nova Iorque, é a maior compilação de dados de crianças vítimas de violência. Reúne dados dos últimos 20 anos. Desta forma, procura alertar para o problema e apresentar estratégias para prevenir e reduzir as agressões contra as crianças.

Em África regista-se o maior número de casos de violência praticada pelos parceiros, maridos ou namorados, e a América do Sul apresenta numerosos casos de crianças vítimas de homicídio, mas os problemas não são exclusivos dos países do hemisfério sul. A Europa e os Estados Unidos também precisam estar atentos à violência sobre as crianças.

A violência contra as crianças ocorre a cada dia que passa, em toda a parte. E, embora prejudique sobretudo as crianças, também afeta todo o tecido da sociedade – ameaçando a estabilidade e o progresso”, afirma em comunicado de imprensa Anthony Lake, Director Executivo da Unicef. “Mas a violência contra as crianças não é inevitável. Podemos preveni-la se não deixarmos que permaneça na sombra.”

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As crianças são vítimas de maus tratos físicos e emocionais – Giacomo Pirozzi/Unicef

A violência contra as crianças, contra as mulheres ou contra outros elementos das comunidades está profundamente enraizada em certas sociedades, tornando-a normal e tolerável. De tal modo que em 28 dos 60 países com dados sobre ambos os sexos, são mais as raparigas do que rapazes que acreditam que bater na mulher é por vezes justificado, refere o comunicado. Sejam rapazes ou raparigas as vítimas de violência sexual, bullying ou de disciplina violenta, os efeitos podem ser duradouros. A violência afeta o desenvolvimento da criança e a saúde física, mental e emocional. E, no futuro, a vítima pode tornar-se o agressor. O mesmo acontece quando a criança cresce num ambiente familiar ou comunitário onde a violência é constante.

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Em julho de 2013 a Unicef lançou a iniciativa #ENDViolence com o objetivo de “tornar visível o invisível”, denunciar os casos e mudar mentalidades, comportamentos e políticas, porque a violência não afeta apenas as crianças de contextos marginais e não é praticada apenas por agressores com predisposição biológica para comportamentos agressivos. A proteção das crianças contra todas as formas de violência é um direito fundamental garantido pela Convenção sobre os Direitos da Criança e a Unicef têm-se dedicado a promover este direito em 190 países e territórios. Aqui recolheu testemunhos de vítimas de violência, mas apenas daqueles que se disponibilizaram a responder, portanto os autores do relatório consideram que os dados agora apresentados representam “uma estimativa mínima do problema”.

Disciplina violenta é a forma de violência mais comum

A violência sobre as crianças não escolhe classes sociais e os agressores não se restringem a desconhecidos. A família, professores, vizinhos ou outras crianças podem ser os agressores. Graves traumas físicos e psicológicos são algumas das consequências, mas as agressões podem mesmo causar a morte das crianças. A principal causa de lesão ou morte nas crianças é o homicídio, que atinge uma em cada cinco crianças em todo o mundo. Só em 2012, 95 mil crianças e adolescentes com menos de 20 anos foram vítimas de homicídio. Os três países do mundo com as mais elevadas taxas de homicídio de crianças e adolescentes com menos de 20 anos são o Salvador, a Guatemala e a Venezuela, mas os Estados Unidos também precisam de tomar medidas mais eficazes em relação a este problema.

Apesar dos dados sobre homicídios de crianças ser preocupante para a Unicef, não é o problema mais frequente na vida das crianças maltratadas. A disciplina violenta é a forma de violência mais comum contra as crianças e os castigos corporais são muitas vezes acompanhados de agressões psicológicas. Seis em cada 10 crianças entre os dois e os 14 anos – quase mil milhões de crianças – são submetidas a castigos físicos regulares pelas pessoas que cuidam delas. Três em cada 10 adultos em todo o mundo acreditam que o castigo físico é necessário para educar corretamente uma criança. A percentagem de adultos que defendem o castigo físico é tanto maior quanto menor o nível de escolaridade ou de rendimentos.

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Muitas crianças são obrigadas a casar e são violentadas pelos maridos – Khemka/Unicef

As agressões não partem exclusivamente dos cuidadores, também os companheiros da escola ou parceiros íntimos se podem tornar agressores. Um terço dos estudantes entre os 13 e os 15 anos passa regularmente por experiências de bullying em todo o mundo. Também um terço dos adolescentes europeus e norte-americanos admite praticar bullying contra os seus pares, com uma taxa de prevalência que vai de cerca de 14% na República Checa e na Suécia, a perto de 59% na Letónia e na Roménia. Por outro lado, a violência física entre parceiros íntimos é a forma mais comum de violência com base no género exercida contra as raparigas: uma em cada três adolescentes entre os 15 e os 19 anos (84 milhões) que vivem em uniões formais.

As crianças ou adolescentes podem ser vítimas de agressão íntima, seja ela emocional, física ou sexual, mas não apenas às mãos dos maridos ou parceiros. Familiares, amigos, parceiros íntimos ou desconhecidos já forçaram 120 milhões de raparigas (uma em cada 10) a relações sexuais ou outro tipo de ato sexual. A prevalência é muito variável: acima dos 10% na maioria dos países da África subsariana, mas menor que 1% na maior parte dos países da Europa. Embora em menor grau, os rapazes também são vítimas de violência sexual. E este tipo de violência também acontece nos países com maior rendimento – a vitimização física ou virtual de adolescentes chegou aos 30% na Suíça (dados de 2009) e aos 55% nos Estados Unidos (dados de 2011).

Agressores e vítimas consideram a violência normal

Os dados sobre as agressões são motivo de preocupação para os técnicos da Unicef, mas a ausência de denúncia por parte das vítimas agrava ainda mais o problema. Sete em cada 10 adolescentes, entre os 15 e os 19 anos, vítimas de violência nunca procurou ajuda para acabar com a situação Muitas raparigas dizem que não tinham consciência de que a situação por que estavam a passar era uma forma de violência ou não encaravam o abuso como um problema. As que procuraram ajuda fizeram-no normalmente junto da família, sem nunca recorrerem a instituições como a polícia, centros de saúde ou centros religiosos. A probabilidade dos rapazes procurarem ajuda é ainda menor. Agrava o facto de parceiros e agressores sexuais culpabilizarem as raparigas pela violência que praticam sobre elas.

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Muitas vítimas de violência não percebem que o abuso é um problema e não procuram ajuda – Susan Markisz/Unicef

A violência contra as crianças está enraizada especialmente em locais com níveis económicos e educacionais baixos, mas não exclusivamente. É um problema generalizado e todos os países devem ter um papel ativo na resolução. Apenas 39 países em todo o mundo protegem legalmente as crianças de todas as formas de castigos corporais, incluindo em casa. O reforço dos sistemas judiciários e penais, assim como dos serviços sociais fazem parte das propostas da Unicef, mas acima de tudo é preciso mudar mentalidades porque qualquer criança que seja vítima de um ato de violência é demasiado. As crianças e adolescentes precisam de denunciar estes casos e os cuidadores têm assumir verdadeiramente esse papel e deixarem de ser agressores.

O relatório surge cerca de uma semana depois de ser conhecido o relatório de Rotherham, no Reino Unido, um relatório independente, encomendado pelo Rotherham Metropolitan Borough Council, que revelou que, entre 1997 e 2013, pelo menos 1.400 crianças no município tinham sido vítimas de abuso sexual. Também neste caso a negligência das forças policiais e dos serviços sociais e a falta de denúncia das vítimas mostraram-se os principais motivos de perpetuar esta situação.

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