Maria Manuela Freitas, professora de Português há mais de 12 anos, já ouviu e já leu de tudo. “Estás” que são “‘tás”, “quês” que são apenas “q” e a palavra “tipo” a intercalar todas as frases. Nas aulas, os alunos escrevem como falam com os amigos — numa espécie de código que “apenas eles entendem”.

“As mensagens que mandam uns aos outros mais parecem um código. A maioria das vezes não as consigo perceber”, confessou a professora do 2.º Ciclo ao Observador.

As abreviaturas também não faltam, assim como as expressões próprias da idade — o “bueda nice”, o “swag”, as “selfies”, o “fixe”. “Às vezes preferíamos que eles tivessem uma linguagem mais cuidada”, admitiu a professora de Guimarães”. Apesar disso, Maria Manuela Freitas acredita que “faz parte da aprendizagem”. Os seus alunos ainda estão a crescer, e a linguagem também há-de “crescer” e mudar com eles.

Apesar disso, muitos termos e expressões nunca chegarão a desaparecer por completo porque, regra geral, a linguagem dos mais novos acaba (quase) sempre por se generalizar. É como um vírus, que acabará por infetar outras camadas da sociedade.

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Hoje em dia, a mudança linguística é fundamentalmente originada nas camadas mais jovens”, explicou ao Observador Clotilde Almeida, professora de Linguística da Faculdade de Letras de Lisboa e especialista em linguagem dos jovens. Mais tarde, “generaliza-se à restante população, porque essas camadas mais jovens vão crescendo. Depois, através do uso, há uma generalização cada vez maior”.

“Isto é um processo em constante avanço e desenvolvimento. A criação linguística, a criação de neologismos [de novas palavras], é ‘nonstop’, para usar a palavra inglesa. Portanto, não tem fim à vista”, acrescentou a professora de Linguística.

Esta “criação linguística” — ao contrário do que muitas vezes se pensa — não representa necessariamente um atropelo à norma. Não é uma questão de os jovens não conhecerem a própria língua ou de não saberem falar — é exatamente o contrário.

Não há nada de mal em ser-se criativo

“A linguagem dos jovens traz consigo uma enormíssima criatividade”, admitiu Clotilde Almeida, mas isso não significa que represente um “atropelo à língua”. Muito pelo contrário. “A linguagem tem a capacidade de ser como um ser vivo, então está sempre em renovação. Não se trata de ser permeável. É uma característica da linguagem — ela pode ser renovada e está aberta à criatividade dos falantes”, acrescentou a especialista em linguagem dos jovens e em discurso digital.

Esta criatividade expressa-se, não só através da criação de novas palavras, mas também através da importação de termos estrangeiros, que são muitas vezes combinados com outros de origem portuguesa. “Bueda cool”, “yaright” ou “ganda cena”, são bons exemplos disso. Ter um encontro é “ter um date”, uma coisa boa é “bueda nice” e os planos furados são um “ganda fail”.

Esta importação de palavras estrangeiras não significa, porém, que os jovens sejam influenciáveis. Para Clotilde Almeida, significa antes que “são abertos a outras variedades do português e a outras línguas, como o inglês”. “São recetivos e gostam de recorrer a um discurso que eles consideram mais atual, digamos assim.”

Vyvyan Evans, professor de linguística na Universidade de Bangor, no País de Gales, concorda com a linguista portuguesa — os jovens “são mais recetivos a novos ideias, a opiniões e às atitudes dos outros”. “Estão menos preocupados com a sua postura em relação à vida social e à cultura. Ainda estão a desenvolver o seu sistema linguístico e, por isso, são mais impressionáveis linguisticamente e mais suscetíveis a serem influenciados por modas“, explicou ao Observador.

É por estas razões que “são mais flexíveis em termos de novas formas de expressão linguística e em termos de inovação”. Para Vyvyan Evans, chegam até a ser “os inovadores mais prodigiosos“. “Estão na vanguarda da criação de novas formas de comunicação”, principalmente no que diz respeito ao meio digital, onde “as novas tecnologias facilitam a criação de novas formas de comunicação interpessoal”.

O “bué” que nunca deixou de ser “bueda fixe”

“Bué de styles, bué de flows, bué de rimas, bué de niggas invejosos”. A letra é de Boss AC e é uma espécie de hino ao “bué”, a expressão de origem angolana que se tornou caracterizadora de uma geração. Mas, apesar de ter sido escrito há mais de dez anos, o verso de “Bué de Rimas” continua a ser tão atual como era antes. O “bué” não morreu — muito pelo contrário.

Foi também a esta conclusão que chegou Clotilde Almeida, que começou a estudar o fenómeno do “bué” há exatamente 11 anos. “Comecei os estudos do ‘bué’ em 2004”, mas a expressão manteve-se “viva até hoje”. Com algumas variações, claro.

À semelhança de outros termos muito populares entre os jovens, como o “ya” (originalmente “iá”) ou o “bazar”, “bué” também teve origem na variedade angolana do português. A entrada em Portugal ter-se-á dado através do contacto entre angolanos e portugueses, após a independência de Angola em 1975. “Subitamente, vieram para Portugal milhares de falantes das variedades africanas, e isso produziu um contacto linguístico”, explicou a professora de Linguística.

“Nós temos uma longa história de contactos linguísticos com os povos e com a cultura africana. Penso que essa história pesa muito”, frisou.

O contacto, que também aconteceu entre as camadas mais jovens, fez com que o “bué” acabasse por pegar e durasse até aos dias de hoje. “Produziu um contacto linguístico frequente nas escolas e nos jovens, e os jovens vão crescendo”, e as palavras vão ficando. Mas com algumas diferenças.

“Bués”, “bué de”, “bué da” (ou mesmo “bueda”) e, mais recentemente, “buéx, são tudo expressões criadas pelos falantes do português europeu. Em Angola, por outro lado, “bué” é sempre “bué”. Mas pode significar outras coisas. Para além de querer dizer “muito”, a palavra pode ainda ser usada como adjetivo, para significar bonito, chique ou elegante. Em Portugal, nunca chegou a ter esse sentido.

“Entrou no português só como advérbio, porque em português de Angola é um adjetivo e um advérbio”, explicou Clotilde Almeida.

Para Vyvyan Evans, esta coisa das modas acontece porque os jovens estão “dispostos a correr riscos” e a usar expressões que não pertencem à norma e que acabam por servir como “marcadores de identidade”. Ou seja, as palavras que usam são um reflexo daquilo que são.

Com o passar dos anos, o “bué” tornou-se tão popular que até ganhou uma entrada no dicionário. O registo aconteceu pela primeira vez em 2001, no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, coordenado por João Malaca Casteleiro.

Não é uma nova linguagem. É “apenas adaptação”

Mas a criatividade não é a única característica da linguagem dos mais novos. “Sem dúvida, toda a linguagem dos jovens é também um reflexo da oralidade”, explicou ainda a professora da Faculdade de Letras. Porém, “não se trata de dizer que é uma nova linguagem, nem que estamos a desvirtuar a língua — trata-se de uma adaptação”, frisou Clotilde Almeida.

É por isso que é muito comum os jovens recorrerem a processos como truncamentos (redução de uma palavra, como por exemplo, “‘tá”), a uma elevada expressividade (muitos “muitos”, muita pontuação!!!!) e à utilização de palavras oriundas das variantes africanas do português. “Tudo isto reflete a comunicação oral, que é a forma mais natural de comunicação”, salientou a professora de Linguística. Existe ainda uma certa tendência para recorrer a abreviaturas, siglas e acrónimos. “Muitos deles vêm do inglês, como ‘bff’ [“best friend forever”], por exemplo. Também já se banalizou a sigla de fim de semana [fds].”

Para além disso, existe sempre uma grande simplificação, quer no uso das palavras quer na construção das próprias frases. “É uma comunicação simplificada, o que não significa que exista um défice cognitivo nos jovens. Há aquelas designações bastante negativas, como ‘geração disto’ e ‘daquilo’, que nem me vou atrever a repetir”, que são erradas.

“E eu insisto sempre nisto — uma coisa é a linguagem oral ou digital, e outra coisa é a linguagem escrita. No meio digital toda a oralização é permitida. A linguagem é extremamente interativa e constante, porque as redes sociais assim o permitem. E é essa interação que leva a uma simplificação”, frisou Clotilde Almeida. “Não significa que haja qualquer tipo de atropelo à norma.”