Está longe de estar resolvido o mal-estar nos corredores do Vaticano, depois de o antigo embaixador da Santa Sé nos Estados Unidos, Carlo Maria Viganò, ter acusado o Papa Francisco de ter tido conhecimento dos abusos sexuais cometidos por um ex-cardeal norte-americano, Theodore McCarrick, em 2013. Viganò já escreveu duas cartas com acusações e o Vaticano já publicou dois comunicados que mostram que a guerra política entre apoiantes e detratores do Papa Francisco não acabou.

Este domingo, o Vaticano tornou pública uma carta aberta do cardeal canadiano Marc Ouellet, prefeito da Congregação para os Bispos — ou seja, o ministro do governo da Igreja Católica com a pasta dos bispos –, na qual afirma que as acusações de Viganò são “uma manobra política sem qualquer fundamentação real capaz de incriminar o Papa”.

A carta de Ouellet surge na sequência de um apelo feito pelo próprio Viganò, numa missiva divulgada no final de setembro, para que o cardeal divulgasse aquilo que sabe sobre o caso. “A sua posição atual parece-me incompreensível e extremamente deplorável“, afirma o cardeal canadiano, dirigindo-se a Viganò, autor das duas cartas que acusam o Papa Francisco de encobrir abusos sexuais.

“Vamos aos factos. Diz que informou o Papa Francisco sobre o caso McCarrick em 23 de junho de 2013, durante a audiência que ele lhe concedeu, juntamente com muitos outros representantes pontifícios com quem ele se encontrou pela primeira vez naquele dia. Imagino a enorme quantidade de informação, oral e escrita, que ele terá recebido naquela ocasião, sobre muitas pessoas e situações. Duvido fortemente de que ele tenha tido o interesse no caso McCarrick na medida que o senhor acredita que teve, já que naquele momento ele era um arcebispo emérito de 82 anos que estava sem funções havia sete anos”, explica Ouellet.

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O cardeal Marc Ouellet é o prefeito da Congregação para os Bispos (Franco Origlia/Getty Images)

Além disso, continua Ouellet, as instruções entregues a Viganò em 2011, ano em que começou as suas funções como núncio apostólico nos EUA, “não diziam nada sobre McCarrick, além do que eu lhe disse pessoalmente sobre a sua situação enquanto bispo emérito, que deveria obedecer a certas condições e restrições devido aos rumores relativos ao seu comportamento no passado”.

Relativamente às alegadas sanções que, segundo Viganò, teriam sido impostas por Bento XVI a McCarrick e levantadas por Francisco, Ouellet escreve que “o ex-cardeal, que se reformou em maio de 2006, tinha sido vivamente aconselhado a não viajar e a não aparecer em público, de modo a não provocar rumores adicionais sobre si”. “É falso apresentar as medidas tomadas como ‘sanções’ decretadas pelo Papa Bento XVI e revogadas pelo Papa Francisco“, destaca.

Segundo o cardeal canadiano, não há documentos assinados por nenhum dos papas nem sequer nenhum documento que indique o cardeal Giovanni-Battista Re (antecessor de Ouellet à frente da Congregação para os Bispos) deu a McCarrick instruções canónicas para que levasse uma vida de oração e silêncio. “A razão é que, naquela altura, ao contrário de hoje, não havia provas suficientes da sua alegada culpa”, esclarece Ouellet.

“Como é que este homem da Igreja, cujas incoerências são hoje reconhecidas, foi promovido em diversas ocasiões, chegando ao ponto de ser nomeado para a mais alta função de arcebispo de Washington e cardeal?”, questiona Ouellet, reconhecendo “os defeitos no processo de seleção que foi levado a cabo neste caso”.

Porém, continua o cardeal, o Papa Francisco “não teve nada a ver com a promoção de McCarrick para Nova Iorque, Metuchen, Newark ou Washington”. Por essa razão, Ouellet diz não compreender os motivos que levaram Viganò a cometer esta “blasfémia” e questiona-o diretamente: “Como consegue celebrar a Eucaristia e pronunciar o nome dele [do Papa] no cânone da missa?“.

O ex-cardeal Theodore McCarrick deixou o Colégio dos Cardeais e vive uma vida de silêncio e oração, depois de terem sido encontradas suspeitas firmes de que abusou sexualmente de menores (VINCENZO PINTO/AFP/Getty Images)

Estudo aos arquivos pode trazer “revelações inquietantes”

Este fim de semana, o Papa Francisco ordenou um estudo dos documentos que estão nos arquivos do Vaticano e que possam ser úteis para apurar a verdade no que diz respeito ao caso McCarrick. O comunicado divulgado pelo Vaticano admite mesmo: “A Santa Sé está consciente de que, da análise dos factos e das circunstâncias, pode concluir-se que foram feitas escolhas que não estariam de acordo com a abordagem atual a estes assuntos. Porém, tal como o Papa Francisco disse: ‘Vamos seguir o caminho da verdade até onde ele nos levar'”.

Na opinião do jornalista norte-americano John L. Allen Jr., um dos principais especialistas em assuntos da Igreja Católica, a forma como a abertura desta investigação foi comunicada parece “preparar o terreno para revelações que podem ser inquietantes” para a hierarquia da Igreja, significando que “alguém da nossa parte [da Igreja] pode ter cometido um erro”.

“O comunicado é exatamente a resposta pela qual muitos críticos têm clamado desde que as acusações contra Francisco da parte do arcebispo italiano Carlo Maria Viganò surgiram”, considera Allen, num artigo de análise publicado no portal Crux, no qual também alerta para o facto de muitas perguntas ficarem ainda por responder.

Cartas, comunicados e acusações

No final de agosto, numa altura em que o Papa Francisco se encontrava em viagem apostólica na Irlanda, o arcebispo Carlo Maria Viganò divulgou uma carta aberta em que afirmava que em 2013, na primeira reunião que teve com o Papa após a eleição, informou Francisco dos abusos cometidos por McCarrick.

Na carta, de 11 páginas, Viganò dizia também que Francisco levantou sanções supostamente aplicadas por Bento XVI ao cardeal norte-americano e pedia ao Papa que fosse “o primeiro a dar o exemplo aos cardeais e bispos que ajudaram a encobrir os abusos do cardeal McCarrick” e que, nesse sentido, renunciasse ao cargo.

O momento foi inédito: pela primeira vez um membro da Cúria Romana pedia, abertamente, a resignação de um Papa e acusava-o de, ativamente, encobrir casos de abusos sexuais. Ao mesmo tempo, a divulgação da carta foi pensada ao detalhe — naquele dia, o Papa Francisco daria uma conferência de imprensa e os jornalistas não passariam ao lado do assunto.

Confrontado com as questões dos repórteres a bordo do avião papal, que o levou da Irlanda de volta a Roma, declarou: “Não vou dizer uma palavra sobre isso, acho que o comunicado fala por si”. E acrescentou: “Leiam o comunicado atentamente e façam o vosso próprio julgamento. Têm capacidade jornalística suficiente para tirar conclusões. É um ato de confiança. Quando passar algum tempo e vocês tiveram tirado as conclusões, talvez eu fale, mas gostaria que a vossa maturidade profissional fizesse isso”.

Numa conferência a bordo do avião papal, Francisco recusou comentar a carta de Carlo Maria Viganò (GREGORIO BORGIA/AFP/Getty Images)

Viganò aproveitou o silêncio de Francisco para voltar a atacar, numa nova carta. “Quem cala consente“, escreveu. “Nem o Papa nem nenhum dos cardeais de Roma negaram os factos que afirmei no meu testemunho. ‘Qui tacet consentit’ [quem cala consente] certamente se aplica aqui, porque se negam o meu testemunho só tinham de o dizer e de fornecer documentação que apoiasse essa negação”, escreveu Viganò.

O antigo embaixador do Vaticano lamentou também que o Papa Francisco se tenha contradito quando decidiu dizer, numa homilia, que a resposta a quem promove o escândalo e a divisão deve ser o silêncio e a oração. “[O Papa] pôs em curso uma subtil calúnia contra mim — e a calúnia é uma ofensa que ele, frequentemente, comparou em termos de gravidade ao homicídio“, considerou o arcebispo.

Foi nesta carta que Viganò lançou um apelo ao cardeal Marc Ouellet. Dizendo que foi ele quem lhe disse que Bento XVI havia imposto sanções ao cardeal McCarrick, Viganò pediu-lhe que fosse “testemunha da verdade” e mostrasse os “documentos-chave que incriminam McCarrick e muitos na Cúria pelo encobrimento”.

A carta de Carlo Maria Viganò trouxe novamente à tona a guerra de poder no interior da Igreja Católica e os bispos de todo o mundo começaram de imediato a posicionar-se de um ou de outro lado. Em Portugal, o cardeal de Fátima, D. António Marto, foi o primeiro a tomar uma posição pública, numa entrevista ao Observador na qual afirmou que a carta de Viganò faz parte de uma “campanha organizada pelos ultraconservadores para ferirem de morte o Papa Francisco“. Depois, os bispos portugueses escreveram uma carta de apoio ao Papa na qual denunciaram “tentativas de pôr em causa a credibilidade” do líder da Igreja Católica. O apoio ao Papa Francisco foi generalizado na maioria dos países da tradição latina.

Nos Estados Unidos, porém, a reação foi diferente, com vários bispos a apoiarem e a darem credibilidade às alegações de Carlo Maria Viganò. Entre eles, o cardeal Raymond Burke, considerado o rosto da oposição ao Papa Francisco e da ala conservadora da Igreja Católica, que disse: “As declarações feitas por um prelado com a autoridade do arcebispo Carlo Maria Viganò têm de ser totalmente tidas em conta por aqueles com responsabilidade na Igreja“. O bispo Joseph Strickland, do Texas, disse considerar “credíveis” as alegações de Viganò; já o bispo americano Joseph Hanefeldt, do Nebraska, afirmou que Viganò teve “uma posição de liderança única e importante no serviço da Igreja e do país” e que “as questões levantadas no seu comunicado devem ser levadas a sério”.