A história é feita de heróis não consagrados. Figuras importantes, decisivas e únicas que, fruto da localização geográfica ou do eco maior de feitos concluídos no mesmo período temporal, acabam esquecidas no tempo e nos livros. O Manchester United de George Best e o Liverpool de Kenny Dalglish e Graeme Souness, sob a batuta de Bob Paisley, são os grandes representantes do futebol inglês do século XX na memória da maioria das pessoas – ofuscando o Aston Villa campeão da Europa em 1982, o Leeds United que chegou à final da Taça dos Campeões Europeus em 1975 e o Nottingham Forest, vencedor da maior competição europeia de clubes da altura em 1979 e 1980. Em pano de fundo de duas maiores conquistas da história do clube que está atualmente a meio da tabela do segundo escalão inglês estava o mesmo homem: Brian Clough.

Esta quarta-feira, o filho de Clough, treinador do Burton Albion, enfrenta o Manchester City de Pep Guardiola depois de ter perdido por 9-0 (!) na primeira mão das meias-finais da Taça da Liga inglesa. Nigel Clough, técnico do clube do terceiro escalão, invocou o pai na conferência de imprensa de rescaldo do jogo, depois de ser goleado no Etihad Stadium, para garantir que Brian “teria adorado David Silva”, médio espanhol do City. A memória do treinador inglês, que morreu em 2004 com 69 anos, voltou a pairar nos jornais e na comunicação social inglesa nos últimos dias, quando Martin O’Neill, antigo selecionador irlandês e capitão da equipa do Nottingham que foi bicampeã europeia, tomou o lugar do dispensado Aitor Karanka no comando técnico do Forest (numa troca que chegou a envolver interesse nos portugueses Carlos Carvalhal e Paulo Sousa).

“O que é que ele diria? Lembro-me de que em 1987 surgiu a possibilidade de eu treinar o Bradford City. Fui lá a uma entrevista em janeiro e a maioria das pessoas que lá estavam tinham levado referências. O vice-presidente do Bradford, que até gostava de mim, disse-me para pedir uma recomendação do Brian Clough. Então fui visitá-lo. Ele estava em Derby, a ver um jogo das camadas jovens. Disse-me: ‘Dou-te a melhor recomendação de sempre, não te preocupes, mas não vais ficar com o trabalho’. Enviou a recomendação e não fiquei com o trabalho”, contou O’Neill na apresentação enquanto novo treinador do Nottingham. Esta será a melhor forma de explicar Clough: perspicaz, inteligente, metódico, um passo à frente de todos os outros.

Clough foi jogador do Middlesbrough e do Sunderland antes de começar a carreira de treinador

Depois de uma carreira de jogador passada nos escalões inferiores, entre o Middlesbrough e o Sunderland, mas com números acima da média – marcou 251 golos em 274 jogos –, Brian Clough precisava de alimentar a família. Pendurou as botas de forma prematura, aos 27 anos, graças a uma lesão, e não havia plano B. O plano A, o futebol, era mesmo o único plano. E quando dar pontapés na bola e agitar as redes dos adversários deixou de ser uma opção para ganhar dinheiro, era preciso uma alternativa. Essa foi adaptar o plano inicial e tornar-se treinador. Depois de um curto período enquanto técnico das camadas jovens do Sunderland, onde realizou os estágios necessários para obter a licença de treinador de futebol, foi convidado para orientar o Hartlepools United em outubro de 1965. Chamou Peter Taylor, então no comando técnico do Burton Albion – o clube que é hoje treinado pelo filho de Clough –, para ser seu adjunto e iniciou aí uma parceria que se tornaria uma das mais frutíferas da história do futebol europeu. No Hartlepools encontrou uma equipa que tinha ficado nos últimos dois lugares da quarta divisão cinco vezes nas seis temporadas anteriores e que estava a braços com uma situação financeira gravíssima: Clough chegou a fazer tours por vários pubs para angariar dinheiro para o clube e era ele próprio que conduzia a carrinha para os jogos fora.

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Em 1966, Clough e Taylor foram despedidos pelo presidente do Hartlepools mas readmitidos depois de um golpe interno da direção do clube que afastou Ernest Ord e trouxe de volta a dupla de treinadores. No final da temporada, o clube terminou o Campeonato num sólido oitavo lugar e Clough e Taylor atraíram a atenção de equipas com voos mais altos, acabando por assinar pelo Derby County, da Segunda Divisão, em maio de 1967. Quando chegaram, o Derby estava afastado do principal escalão inglês há dez anos e o único troféu conquistado tinha já mais de 20 anos – na primeira época, sem milagres nem golpes de teatro, ficaram um lugar abaixo da temporada anterior. Mas Brian Clough já tinha começado a cimentar as fundações que lhe permitiriam ser o treinador mais bem sucedido da história do clube: contratou vários jovens jogadores, manteve apenas quatro da equipa que herdou e dispensou onze, despediu o secretário, o jardineiro e o chefe do departamento de scouting e ainda duas senhoras responsáveis pelas refeições do plantel que apanhou a rir depois de uma derrota. No ano seguinte, para além de se tornar campeão da Segunda Divisão e ser promovido à Division One, o nome dado na altura àquilo que hoje é a Premier League, Clough começou a assumir o estilo que o viria a acompanhar até ao fim da carreira.

Com Sam Longson, presidente do Derby County: o diferendo entre os dois acabaria por motivar a saída de Clough e Taylor do clube

Inspirado pela personalidade de Alan Brown, treinador que o orientou no Sunderland, rapidamente foi rotulado de “duro mas justo”. Era rígido e exigente no que tocava ao jogo limpo e não admitia perdas de tempo, simulações ou confrontos com o adversário: o jogo tinha 90 minutos e esses 90 minutos existiam para ser jogados e não desperdiçados. Foi em Derby que aprimorou as jogadas de equipa, construídas a partir de trás e com a bola colada à relva, sem passes longos nem cruzamentos tirados muito encostados ao corredor; afinal, como disse mais tarde, “se Deus quisesse que o futebol fosse jogado nas nuvens tinha colocado lá os relvados”. Foi também em Derby que se tornou o inimigo número um dos jornalistas, por responder de forma dura às perguntas feitas nas conferências, e começou a pedir que jogadores, staff e comunicação social o tratassem por “Mr. Clough”. Na primeira época na Division One, ficou em quarto, o melhor resultado do clube em mais de 20 anos – contudo, devido a irregularidades financeiras, o Derby County foi banido das provas europeias na temporada seguinte e multado em 10.000 libras. Depois de um desmotivante nono lugar em 1970/71, Clough e Taylor conseguiram levar o clube ao topo da Primeira Divisão em maio de 1972, algo inédito nos 88 anos do Derby. Era histórico; mas era também o princípio do fim.

Na preparação da época seguinte, Clough recusou acompanhar a equipa numa digressão pela Holanda e pela Alemanha caso não pudesse levar a família. Sam Longson, então presidente do Derby County, recordou o treinador de que esta não era uma viagem de férias, mas sim uma viagem de trabalho. Clough não ficou convencido, recusou viajar e enviou Peter Taylor no seu lugar. Nesta altura, dono de uma popularidade acima da média, começou a surgir de forma frequente em programas de televisão e a assinar colunas de opinião em jornais, para além de ter perdido os filtros e ter chegado a apelidar de “desgraçados” os adeptos do Derby que, na sua opinião, “só começam a cantar quando estão a ganhar”. Falhou a revalidação do título e terminou a temporada em sétimo, caindo entretanto nas meias-finais da Taça dos Campeões Europeus aos pés da Juventus, saindo do estádio dos italianos a recusar falar com os jornalistas porque não conversava com “bastardos batoteiros” e questionando até a posição de Itália na Segunda Guerra Mundial. O diferendo final entre o treinador e a direção liderada por Longson chegou em agosto de 1973, quando Brian Clough assinou um texto publicado no Sunday Express.

À esquerda, num dos seis jogos que cumpriu enquanto treinador do Leeds. À direita, Bill Shankly, mítico treinador do Liverpool

“Os homens que lideram o futebol têm perdido uma oportunidade maravilhosa de limpar o jogo com uma só vassourada. O problema com o sistema disciplinar do futebol é que aqueles que julgam e são árbitros podem perfeitamente ter interesses paralelos”, escreveu o treinador, acrescentando longos parágrafos em que criticava o Leeds United e o respetivo técnico, o inglês Don Revie, pelo jogo sujo que demonstravam dentro de campo e que era encorajado pelo comando técnico, sugerindo até a aplicação de multas aos jogadores e a despromoção do clube ao segundo escalão. Sam Longson demarcou-se das afirmações de Brian Clough mas a divisão era já mais do que irremediável: em outubro de 1973, Clough e Peter Taylor demitiram-se do Derby County e foram acompanhados pelo staff e pelo departamento de scouting, que os seguiram para uma passagem curta e de má memória pelo Brighton, da Terceira Divisão, onde venceram apenas 12 dos 32 jogos do Campeonato. O passo seguinte foi o mais inesperado.

Don Revie, então treinador do Leeds United, foi convidado para substituir Joe Mercer no comando da seleção inglesa. Para o lugar de Revie, o Leeds escolhou Brian Clough, que era publicamente crítico da forma agressiva como o clube jogava, do tempo perdido para arrastar vantagens mínimas e da “batota”, palavra que tantas vezes usou. Aceitou o desafio sozinho, já que desta vez Peter Taylor decidiu ficar enquanto treinador principal do Brighton e não o seguiu. Sozinho, sem a outra metade da dupla, Clough chegou ao primeiro treino com o objetivo de tentar mudar a forma de pensar enraizada há vários anos numa equipa ganhadora e que, de uma forma ou de outra, conseguia conquistar títulos. “Podem atirar as vossas medalhas todas para o lixo porque não as ganharam de forma justa”, terá dito o treinador aos jogadores, para depois afastar três das estrelas da equipa, Johnny Giles, Norman Hunter e Billy Bremner. Durou 44 dias no Leeds: foi despedido em setembro de 1974, depois de vencer apenas um jogo em seis, e manteve até 2014 o pior registo de um treinador no clube. O falhanço de Clough no Leeds foi pouco interpretado e encarado como algo inexplicável, principalmente face ao sucesso anterior no Derby e ao que se seguiria, no Nottingham, e motivou até um filme, “Damned United” – algo como Amaldiçoado United, numa tradução livre.

A dupla Clough-Taylor é até hoje uma das mais bem sucedidas do futebol inglês

Doze semanas depois de deixar o Leeds, em janeiro de 1975, Brian Clough assinou pelo Nottingham Forest, ainda sem Peter Taylor. O primeiro ano foi para pôr ordem na casa: deu a titularidade a Ian Bowyer, que já tinha conquistado títulos europeus no Manchester City, contratou os escoceses John McGovern e John O’Hare, convenceu John Robertson e Martin O’Neill, que tinham pedido para sair no final da época anterior, a permanecer no clube e trouxe Viv Anderson, então ainda júnior, para a equipa principal. Em julho de 1976, Peter Taylor deixou o Brighton e voltou a assumir o papel de adjunto de Clough. Juntos, levaram o Nottingham à promoção à Division One, foram campeões na época de estreia no principal escalão do futebol inglês e ganharam a Taça dos Campeões Europeus nas duas temporadas seguintes (1978/79 e 1979/80). As vitórias europeias, a primeira contra o Malmö da Suécia e a segunda contra o Hamburgo da Alemanha, permanecem os maiores feitos da história do clube inglês e garantiram a Brian Clough o estatuto de miracle maker.

Em 2003, menos de um ano antes de morrer, com o filho Nigel, que esta quarta-feira enfrenta o Manchester City enquanto treinador do Burton

A fórmula era simples: se o Nottingham marcasse sempre mais do que o adversário, não perderia qualquer jogo. Nos treinos, quando os jogadores perguntavam qual era a estratégia a aplicar num livre na esquerda ou num livre na direita, numa bola parada mais perto ou mais longe da baliza, Clough limitava-se a responder “rematem à baliza”. O guarda-redes Peter Shilton, McGovern, O’Neill, Robertson, Trevor Francis e Kenny Burns – ou Kenneth, já que o treinador era a única pessoa, para lá da mãe do escocês, a tratá-lo pelo nome completo – formaram uma geração de ouro que devia muito à qualidade individual mas compensava em garra e, principalmente, em receio de Brian Clough. “Quando não souberem o que fazer, passem ao Robertson”, dizia o treinador inglês, que nunca se coibiu de defender que o extremo era “o único que sabia o que fazer com a bola”. Brian Clough ficou no Nottingham Forest até 1993, sem voltar a conseguir qualquer glória europeia e conquistando apenas duas Taças da Liga nos anos seguintes; Peter Taylor reformou-se e abandonou a parceria em 1982, em conflito com Clough, com quem não voltou a falar até morrer, em 1990. O primeiro chegou a dizer que atropelava o segundo se o visse na berma da estrada a pedir boleia, o segundo referiu que não nutria mais nada do que “puro desgosto” pelo primeiro, mas foi a Taylor que Clough dedicou a autobiografia que escreveu em 1994 e é dos dois a estátua que o Derby County mandou construir no recinto de Pride Park.

Inspiração de José Mourinho, que há uns anos referiu que “a história não pode apagar” o que o treinador fez com o Nottingham Forest, Brian Clough morreu em 2004, aos 69 anos, vítima de um cancro no estômago em tudo relacionado com o alcoolismo que o acompanhou ao longo do tempo. Esta semana, com a presença de Nigel Clough nas meias-finais da Taça da Liga e a chegada de Martin O’Neill ao comando técnico do Nottingham, o “melhor treinador que a seleção inglesa nunca teve” voltou à alta roda do futebol inglês. E estará a assistir a tudo com vista privilegiada já que, tal como disse poucos anos depois de se reformar, “quando Brian Clough morrer, Deus terá de abdicar da sua cadeira favorita”.