Enviado especial a Pequim

À segunda, Liu Xin já vinha preparada. Jornalista e apresentadora do programa “The Point”, da CGTN, o canal de notícias em inglês da televisão chinesa, Xin entrevistou Marcelo Rebelo de Sousa em Lisboa, no final do ano passado, quando o Presidente da China fez uma visita de Estado a Portugal. “Já tenho alguma experiência. Da primeira vez, não estava acostumada aquele registo, em que ele começava a falar e ia por ali fora”, conta ao Observador a jornalista. Ou seja, acabou por não haver tempo para muitas perguntas: “Ele disse-me no fim que tinha feito de propósito”, revela a rir-se.

Agora, o novo frente-a-frente é em Pequim, numa sala do hotel onde o Presidente português está instalado. Liu Xin traz com ela uma equipa de 5 pessoas, com realizador, produtora e três repórteres de imagem. Têm 15 minutos reservados com Marcelo para uma entrevista a emitir na íntegra no canal de notícias que tem como lema “documentar e explicar a ascensão da China”, e fazê-lo para uma plateia internacional. “Desta vez, vocês viram que eu já fui direta ao assunto, tentei pará-lo várias vezes, tentei impor as minhas perguntas”, diz. E tentou, de facto. Mas Marcelo chegou à China claramente com várias coisas para dizer e enquanto não as dissesse, não se calava, por mais tentativas que a jornalista fizesse.

Uma das mensagens que o Presidente da República trouxe na bagagem tinha a ver com os Direitos Humanos. O assunto não veio à baila na entrevista, mas horas antes Marcelo introduziu-o no discurso que fez perante os 37 chefes de Estado e de Governo que participaram na 2ª edição do Fórum Faixa e Rota, uma iniciativa do Presidente Xi JinPing que propõe muitos milhões para investir em infraestruturas que voltem a ligar a Ásia à Europa, numa espécie de reedição da antiga Rota da Seda.

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A Marcelo cabia falar num painel sobre ambiente e desenvolvimento sustentável e o Presidente elegeu as alterações climáticas como uma questão essencial para os tempos de hoje. Mas, lá está, se há coisas para dizer, nem que se introduza um parágrafo no final do discurso. De acordo com a versão escrita a que o Observador teve acesso, foi isso que fez o Presidente, quando pediu que se combine a ação multilateral com diálogo político, “porque essa é verdadeiramente a única via para garantir um mundo melhor, onde a paz, o desenvolvimento, a justiça e o efetivo respeito pelos direitos humanos prevaleçam”. 

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Marcelo não foi o único a fazê-lo e, segundo explicou mais tarde aos jornalistas, também o secretário-geral das Nações Unidas, levou o assunto para a mesa de reuniões. O tema continua na agenda mediática e o próprio António Guterres tem sido pressionado para ter uma voz mais forte com a China nessa matéria. Xi Jinping ouviu, mas ao que se sabe, não respondeu nem a Marcelo, nem a Guterres. Embora tenha feito comentários no final de cada discurso, nunca se terá referido aos Direitos Humanos. “Não focou pontos concretos da minha intervenção”, explicou Marcelo Rebelo de Sousa: “Ouviu a exposição e fez o comentário falando da conversa que tínhamos tido e da cooperação entre Portugal e a China, em função do encontro que tínhamos tido em Lisboa”.

A ausência de resposta não é propriamente uma surpresa, embora ainda haja mais oportunidades nesta visita à China que a partir de segunda-feira ganha a forma de visita de Estado e prevê novos encontros com Xi JinPing, onde Portugal deverá voltar a marcar posição.

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Mas para já, o dia foi de Faixa e Rota, uma poderosa jogada diplomática da China que pôs o Ocidente dividido entre a curiosidade e a desconfiança. Portugal faz parte do grupo de 20 países da União Europeia que assinaram o memorando de entendimento e, com a coincidência do calendário, foi o único que se fez representar por um chefe de Estado. Marcelo ganhou lugar de destaque na fotografia de família, embora na segunda fila, mesmo no meio entre o Presidente chinês e o Presidente russo Vladimir Putin, com quem não houve uma reunião bilateral Portugal/Rússia, mas houve oportunidade para uma “conversa informal”.

Esta é a primeira vez que Portugal participa no Fórum, cuja primeira edição aconteceu em 2017. Marcelo chegou a ponderar viajar até à China nessa altura, mas a reunião coincidia com o 13 de maio e Portugal acolhia o Papa Francisco, pelo que os planos foram adiados. Desde então muito se tem escrito sobre o risco de a China estar a criar a partir desta iniciativa uma plataforma com muito dinheiro para distribuir para ganhar assim poder e influência numa vasta região do globo que vai da Ásia à Europa, passando pelo continente africano.

Marcelo Rebelo de Sousa reconhece que havia “críticas e dúvidas em alguns setores internacionais relativamente à boa fé da China”. E por isso considerou que o discurso do Presidente chinês, e os compromissos por ele assumidos, foram um dos aspetos mais importantes do encontro. “A China respondeu às críticas e disse que aderia completamente aos princípios do Direito Internacional, ao respeito das regras da Organização Mundial do Comércio, à transparência, ao equilíbrio de prestações, ao multilateralismo e não a uma forma de dominação unilateral mais ou menos disfarçada”, disse o Presidente.

O Presidente português, durante o 2º Fórum Faixa e Rota, que decorreu em Pequim

O que não quer dizer que Lisboa não reconheça na iniciativa chinesa muito mais do que meras boas intenções: “A China tem condições para ser uma potência em termos económicos e políticos, sabe que tem condições para o ser e tem uma estratégia em função disso. Como os Estados Unidos a tem, como a Federação Russa a mantém ainda”.

É neste quadro que Portugal quer jogar, não ignorando os riscos mas reservando um lugar na sala para não ficar de fora. Os números oficiais dão conta de que as exportações dos países parceiros do Faixa e Rota para a China e o investimento chinês nesses países cresceram mais rapidamente do que os dos que não fazem parte do grupo.

As autoridades portuguesas querem, por isso, tirar partido da localização geográfica do país, dar uma dimensão atlântica ao projeto chinês, e pôr o foco no Porto de Sines, que pode servir de ligação nas rotas do Extremo Oriente ao oceano Atlântico. Para além das rotas terrestres e marítimas, o país quer também acrescentar uma rota aérea.

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Onde Portugal não cede, juntamente com os parceiros europeus, é que o Fórum Faixa e Rota ganhe uma dimensão institucional, que possa competir com outras organizações internacionais. Mas, de acordo com o que fontes diplomáticas explicam ao Observador, a China também não pede que isso aconteça. À boa maneira chinesa, a ambição é um projeto de longo prazo e a estratégia passa mais por acolher e incluir, sem roturas e desconforto, e depois deixar que as coisas ganhem forma naturalmente, numa espécie de efeito bola de neve.

Certo é que Lisboa reconhece estar a viver-se uma fase de transição nas relações internacionais, onde a China – que sempre foi grande, mas não global – vai ter uma palavra a dizer: “A China era fechada e protecionista. Mudou de posição. Ainda há pouco o disse, numa entrevista à televisão chinesa”, conta Marcelo.

E Liu Xin ouviu isso e muito mais. Já com as câmaras da televisão chinesa desligadas, o Presidente português contou-lhe que a presença no Fórum lhe fez lembrar uma noiva que é cortejada por vários pretendentes. Uma cortesia no fim da conversa onde a jornalista chinesa acabaria por reconhecer ao Observador que, mesmo à segunda, voltou a deixar o entrevistado falar demais: “Porque ele tinha pontos de vista interessantes. E quando pensamos que está a terminar uma resposta, de repente sai-se com ideias muito engraçadas, como quando falámos sobre o próximo Fórum Faixa e Rota e ele disse que não vai haver mesa com capacidade para sentar tanto Chefe de Estado, que vai querer participar”.