É a voz do próprio quem o diz, no final do trailer da série documental de quatro episódios que estreia dia 14 na HBO: Jesús Gil y Gil sempre foi um líder. Até na prisão, para onde entrou pela primeira vez em 1969, ainda era empresário do ramo imobiliário, condenado a cinco anos de prisão depois de o restaurante do seu mais novo complexo residencial na província de Segóvia colapsar durante um banquete, provocando a morte de 58 pessoas e ferido outras 150.

Ficou provado: a obra tinha sido feita sem qualquer tipo de licenciamento. Gregorio Jesús Gil y Gil, então com 36 anos, casado e já pai de quatro filhos, pagou a fiança de 100 milhões de pesetas exigidas para cobrir os custos de responsabilidade civil decorrentes do acidente. Depois deu entrada na pequena cadeia de Segóvia, que à data pouco mais albergava do que bêbedos e vagabundos — e era por isso jocosamente apelidada de “Ebrios” pelos cidadãos cumpridores da cidade.

Mais do que líder, na prisão foi rei: contou o El Mundo em 2002, ficou numa cela que mais parecia o seu escritório — e tratou de continuar a gerir os seus negócios, como se estivesse em liberdade. Impecavelmente vestido, recebia empregados e fornecedores. E ao negócio imobiliário, acrescentou o da venda de conservas, vinho, café e tabaco aos outros presos.

Não comia o mesmo que eles: todos os dias, os chefs dos melhores restaurantes Los Ángeles de San Rafael, o complexo residencial que ergueu sem licenças a 68 km de Madrid, tratavam de lhe preparar o almoço, a partir de ementas feitas pelo próprio Gil y Gil, e que invariavelmente continham os seus favoritos: leitão, caranguejos de rio, robalo, pescada, patas de rã e ensopado de peixe, com whisky e charutos Montecristo para a sobremesa.

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De vez em quando, Gil y Gil — que estudou num colégio de padres, ainda entrou na universidade em Madrid e viveu numa pensão de prostitutas mas começou a vida adulta a trabalhar num stand de carros em segunda mão — convidava outros prisioneiros ou funcionários da prisão para a sua mesa.

Quando, em fevereiro de 1972, ao fim de 27 meses, foi indultado por Francisco Franco, todos o adoravam. E ele a eles: seria preso outras duas vezes (em 1999 e em 2002, ambas as vezes por desvio de fundos públicos, prevaricação e falsidade), trataria sempre de ajudar os antigos companheiros de cárcere assim que saíam, primeiro dando-lhes emprego em Los Ángeles de San Rafael, depois nos serviços de limpeza e jardins da Alcaldía de Marbella, que liderou entre 1991 e 2002.  Só não existem registos de que tenha levado ex-presidiários para o Atlético de Madrid, clube de futebol de que se tornou sócio em 1981 e a que presidiu entre 1987 e 2003.

Um jacuzzi, um partido político e um cavalo

Um personagem corrupto, polémico e megalómano, que uns odeiam e, ainda assim, outros tantos adoram. É desta forma que a HBO apresenta Jesús Gil y Gil, o homem que no mesmo ano (1991) em que criou um partido político com o seu nome — Grupo Independiente Liberal, GIL –, ganhou as eleições com maioria absoluta e aceitou apresentar um programa de televisão em cuecas e cordão de ouro ao pescoço, dentro de um jacuzzi, rodeado por uma série de raparigas em biquíni.

“Já começam a ter medo. Não querem que o Gil seja alcaide, tenho a certeza. O Gil chateia, o Gil é difícil, o Gil é perigoso”, ouve-se também na promoção de “O Pioneiro”, com o político e dirigente a recorrer ao popular recurso futebolês e a falar na terceira pessoa no singular.

Como esta, há muito mais frases polémicas e até listas com as barbaridades que Gil y Gil,  nascido numa família humilde, numa pequena cidade na província de Sória, proferiu ao longo dos anos. Grande parte delas foram ditas enquanto presidente do Atlético de Madrid, cargo que o tornou conhecido internacionalmente mas que nem por isso lhe deu tantas alegrias desportivas quanto isso: ao longo dos 16 anos em que esteve à frente do clube, era Paulo Futre a estrela maior da equipa, os colchoneros ganharam um campeonato e três taças de Espanha.

“Era pegar numa metralhadora e fuzilá-los. Se não marcam, que morram. Alguns jogadores não merecem viver.”

“Para mim, contratar um treinador é como beber uma cerveja. Posso contratar 20 num ano. Ou até cem se for preciso.” 

“O meu erro foi tratar os futebolistas como pessoas.”

“Os pretos do Ajax… Aquilo parecia o Congo, com todo o respeito. Olhavas para um lado e estavam quatro pretos a aquecer, olhavas para o outro e estavam outros cinco, e no campo mais três. Saíam pretos de todo o lado, como de uma máquina de fazer churros. E, para que conste, eu não sou racista.”

“Ia contratar um jogador importante mas entretanto soube que ele era maricas… e aí disse: este não ponho eu no balneário.”

Também enquanto presidente do clube, que converteu em sociedade anónima desportiva, mantendo em seu poder 85% do capital social, chegou a agredir outros dirigentes, um deles, o presidente do Compostela, em frente a câmaras de televisão e enquanto gritava: “Volta a dizer o nome do Gil e arranco-te a cabeça!”. Já nos dois cargos que ocupava, fazia o que queria sem prestar contas a ninguém — e isso incluía inflacionar o preço de jogadores, falsificar contratos e movimentar dinheiro entre as suas contas pessoais e as do clube e da Alcaldía de Marbella.

Paradoxalmente, nos jornais, fazia por aparecer como o excêntrico e destravado presidente que não fechava negócios sem antes se aconselhar com Imperioso, o seu cavalo branco — “A paixão que tinha por ele provocou até ciúmes nos meus jogadores. Em 1997, enquanto estávamos a jogar para a Champions com o Ajax, em Amesterdão, o Imperioso foi operado em Madrid despois de uma cólica intestinal, foi uma situação de vida ou de morte. Telefonei desde o relvado 16 vezes para saber como estava a correr. O Radomir Antic [então treinador do Atlético] queixou-se de que o presidente estava mais interessado no cavalo do que na equipa”, contou uma vez o próprio Gil y Gil –, ou a exibir um crocodilo bebé, que dizia alimentar a ovo cozido, maçã e peixe.

Na série documental de quatro episódios que se estreia no próximo domingo, estarão alguns destes episódios, outros talvez não. Para fazerem “O Pioneiro” Enric Bach e Justin Webster tiveram acesso a material de arquivo e entrevistaram jornalistas, conhecidos e familiares de Jesús Gil y Gil.

Jesús Gil Marín, o primogénito, recordou perante as câmaras os anos de juventude do pai e o primeiro descapotável que comprou, que em Madrid era conhecido como o “carro da carne”, tantas eram as mulheres a quem ele fazia questão de dar boleia. “Até casar, o meu pai foi muito travesso. E quando digo muito travesso é mesmo muito”, contou Jesús Gil. “Era muito mulherengo, muito putanheiro. Muito, muito, muito”, disse mais prosaicamente um amigo de infância de Gil y Gil, que na noite em que ganhou o primeiro milhão de pesetas, já no ramo imobiliário, terá dormido em cima de uma série de notas de mil.

O retrato é o de uma vida de excessos que, talvez por isso mesmo, acabou cedo. Jesús Gil y Gil morreu a 14 de maio de 2004 de paragem cardíaca, cinco dias depois de ter sofrido um AVC, e foi velado no Estádio Vicente Calderón por mais de 15 mil pessoas. Tinha 71 anos e dois processos pendentes em tribunal — postumamente seria absolvido por prescrição dos factos num e considerado culpado no outro. O seu património líquido provisório, informou a família às autoridades, era de 625.007 euros em participações de empresas, mas nas suas contas existiam apenas 854 euros.

Em 2011, María Ángeles Marín e os quatro filhos do casal foram condenados a entregar ao Estado espanhol 105 milhões de euros, o valor (mais juros) alegadamente desviado por Gil y Gil da cidade de Marbella para os seus próprios cofres ao longo dos 11 anos em que foi alcalde da cidade. Como nunca chegaram a fazê-lo, as 150 propriedades da família continuam, em 2019, sob arresto. Não obstante, a família, agora encabeçada por Miguel Ángel Gil Marín, conselheiro do Atlético de Madrid e dono de 51% do clube, figura este ano na lista dos 200 mais ricos de Espanha. Património líquido: 240 milhões de euros.