O dia prometia ser longo no Reino Unido. A confirmação, surgida logo pela manhã, de que a suspensão do parlamento começaria no final da sessão aumentou as expectativas à volta do que se passaria durante esta segunda-feira na Câmara dos Comuns, a câmara baixa do parlamento britânico. E, apesar de a derrota da proposta de Boris Johnson para eleições antecipadas a 15 de outubro ter sido mais que antecipada, este não seria mais um dia no longo e sinuoso caminho do Reino Unido para o Brexit sem a sua dose de surpresas. Acabaria, aliás, com deputados a cantar nos Comuns, gritos de “vergonha”, cartazes de protesto e uma intervenção inesperada de um John Bercow furioso.

Boris Johnson acabaria por ver a moção que apresentou ao parlamento para pedir eleições antecipadas derrotada com apenas 293 votos a favor (precisava de 434 para ter a necessária maioria de dois terços), depois de um debate aceso em que a troca de argumentos entre o primeiro-ministro e o líder da oposição, Jeremy Corbyn, não variou muito. Johnson abriu as hostilidades, desafiando Corbyn a votar favoravelmente a proposta, classificando-o ironicamente como o único líder da oposição da história britânica a confiar no Governo — ao não apoiar o pedido para ir a votos — e lembrando-lhe os apelos dos trabalhistas à realização de novas eleições; Jeremy Corbyn concordou que os trabalhistas desejam eleições, mas disse que não querem arriscar uma saída sem acordo pelo meio. Já o tinha dito, de resto: o Labour só votará a favor de eleições depois de estar garantido que o Reino Unido não sai da UE de forma caótica a 31 de outubro.

Boris Johnson derrotado de novo. Parlamento recusa eleições antecipadas pela segunda vez

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A discussão andou também à volta das intenções de Boris Johnson relativamente ao novo adiamento do prazo para o Brexit, determinado na semana passada pelo parlamento, em caso de no deal. O primeiro-ministro, que já tinha avisado que não tem intenção de ir a Bruxelas pedir outra extensão do prazo, voltou a insistir (“Eu não vou pedir um adiamento do Brexit”, garantiu taxativamente) e Jeremy Corbyn concluiu: “Fica claro que [o primeiro-ministro] não tenciona cumprir a lei”. E a suspensão do parlamento, que começa agora, também não ficou de fora do debate, com Jeremy Corbyn e os escoceses do SNP a acusarem Johnson de querer fechar o parlamento e a democracia para fugir ao escrutínio parlamentar das suas políticas. No fim, o primeiro-ministro sofreu a sexta derrota parlamentar em seis dias. Mas já durante a tarde a Câmara dos Comuns tinha dado mais uma machadada no governo.

A visita à Irlanda para reafirmar a saída a 31 de outubro e a demissão inesperada

O dia começou com uma visita do líder do governo britânico a Dublin, para discutir o Brexit ao pequeno-almoço com o primeiro-ministro irlandês, Leo Varadkar. Foi ao lado de Varadkar que Boris Johnson garantiu publicamente que o seu objetivo é tirar o Reino Unido da União Europeia com um acordo negociado — algo de que até os seus colaboradores já começam a duvidar. É o caso de Amber Rudd, a ex-ministra do Trabalho que se demitiu este sábado com o argumento de que um Brexit com acordo já não era o principal objetivo do Governo de Boris Johnson.

Foi também a partir de Dublin que se soube oficialmente que o parlamento britânico seria suspenso a partir da meia-noite — hora a que se previa que a sessão desta segunda-feira terminaria. Já não foi a tempo de evitar que entrasse em vigor a lei que obriga o governo britânico a pedir um adiamento do Brexit até 31 de janeiro de 2020, caso não haja um acordo até ao dia 19 de outubro. Mas Boris Johnson não o pretende fazer. Prefere “estar morto numa valeta” a pedir mais um adiamento do Brexit e até já pensou num plano B para contornar a lei — mas esse plano também já suscitou dúvidas legais e até pode significar uma pena de prisão para o primeiro-ministro.

Boris Johnson tem um plano B para não adiar o Brexit, mas isso pode levá-lo à prisão

Johnson preferia, antes, eleições antecipadas. Com as sondagens a darem-lhe uma vitória confortável, o primeiro-ministro britânico queria ir às urnas a 15 de outubro e assegurar um novo mandato, com maioria parlamentar, que lhe permitisse reverter a lei e tirar o Reino Unido da União Europeia rapidamente. Mas o líder da oposição, Jeremy Corbyn, já havia dito — e repetiu-o esta segunda-feira — que os trabalhistas só apoiariam eleições quando estivesse assegurado o cumprimento da lei e definido o novo prazo para a saída do Reino Unido (embora também no Partido Trabalhista não haja consenso sobre qual a melhor data para as eleições).

Foi este confuso e intrincado contexto político que serviu de mote às discussões parlamentares que ocuparam a Câmara dos Comuns neste último dia de funcionamento antes da suspensão. O dia, que começou também a com a promulgação por parte da Rainha Isabel II da lei que obriga Boris Johnson a pedir o adiamento do Brexit, tinha na agenda a discussão de cinco moções relativas às instituições nacionais da Irlanda do Norte e de emendas a um projeto de lei sobre obras de manutenção em edifícios do parlamento. Para o fim estava guardado o mais importante: a votação (e derrota) da proposta de eleições antecipadas, apresentada por Boris Johnson.

Mas a agenda parlamentar sofreria uma reviravolta bem ao estilo Brexit. Logo a abrir, um anúncio surpresa: John Bercow, o carismático presidente da Câmara dos Comuns, comunicou aos deputados que, a partir de 31 de outubro, deixará as funções. Bercow termina de dez anos com a difícil tarefa de moderar os ânimos dos deputados britânicos (“Ordem!”) no meio do momento político mais conturbado da história recente do país.

“Ordem!” Dez anos depois, John Bercow vai deixar de ser o “speaker” do Parlamento britânico

O anúncio acabaria por fazer com que vários deputados começassem as suas intervenções com elogios ao speaker. E, de forma irónica, até Boris Johnson fingiu elogiar Bercow, pela sua “característica imparcialidade”.

Dois debates de última hora, duas vitórias para a oposição

Depois, dois debates de emergência obrigariam a reduzir a uma hora o tempo dedicado à discussão das moções relativas à Irlanda do Norte. Tudo porque o ex-conservador Dominic Grieve (um dos rebeldes do partido conservador expulsos do grupo parlamentar depois de votar contra o governo na semana passada) e o líder da oposição, Jeremy Corbyn, apresentaram pedidos de debate urgente — que foram aceites por Bercow.

O primeiro estava diretamente relacionado com a suspensão do parlamento. Grieve disse publicamente ter recebido informações de funcionários do governo que apontavam para a possibilidade de a suspensão do parlamento ter sido usada deliberadamente para atrasar a discussão do Brexit e impedir os deputados de escrutinarem o processo — ao contrário do que garantira Boris Johnson. “Nos dias que se seguiram [ao anúncio da suspensão do parlamento], comecei a receber informações de funcionários do Governo, que me informaram que acreditavam que a forma como este assunto tinha sido tratado cheirava a escândalo. Não há outra forma de o descrever”, disse Dominic Grieve quando apresentou a moção na qual pedia que o Governo entregasse ao parlamento uma série de documentos e comunicações internas sobre o assunto.

Entre as informações pedidas por Dominic Grieve encontram-se os documentos da chamada operação Yellowhammer (conjunto de estudos feitos pelo Governo para avaliar os impactos de um Brexit sem acordo no que toca à escassez de bens essenciais que dependem das importações da União Europeia, e cujos documentos foram parcialmente divulgados pela imprensa britânica) e as comunicações internas dos funcionários do Governo que estiveram envolvidos na decisão de suspender o parlamento.

A moção apresentada por Dominic Grieve seria aprovada com 311 votos a favor e 302 votos contra, o que significa que o Governo ficou agora obrigado a revelar esta documentação. No entender da oposição, a divulgação destes documentos irá comprovar não só que a suspensão do parlamento foi um mecanismo usado por Boris Johnson para limitar o poder dos deputados no processo do Brexit, mas também que o Governo conhece a fundo os impactos negativos de uma saída sem acordo — que Boris Johnson continua a colocar em cima da mesa.

O Governo demorou poucos minutos a responder, através de um porta-voz que classificou a quantidade de informação pedida pelo parlamento como “desproporcional e sem precedentes”, mas deixando a certeza de que o parlamento receberá “a informação apropriada”. Pouco depois, através da BBC, chegou a informação de que, ao que tudo indica, o Governo entregará os documentos relativos à operação Yellowhammer já na terça-feira. Relativamente às comunicações internas — que incluem SMS e mensagens trocadas através de aplicações como o Whatsapp, o Messenger e outras —, não é ainda certo o que irá ser feito pelo Governo.

Já Jeremy Corbyn apresentou uma moção para debater no parlamento as recentes declarações de Boris Johnson, com o único objetivo de deixar claro que o Governo cumpre ou não a lei que o obriga a ir a Bruxelas pedir a extensão do prazo. A moção foi aprovada sem oposição (e, por isso, sem necessidade de contagem de votos), embora, na prática, não tenha mudado nada — já que à noite Boris Johnson continuava a garantir que não iria pedir um adiamento. A resposta governamental chegou através do ministro dos Negócios Estrangeiros, Dominic Raab, e bem ao estilo de todo o processo do Brexit: vaga. “O governo vai sempre respeitar o Estado de direito. Essa tem sido consistentemente a nossa posição clara e, honestamente, é ultrajante que isso esteja sequer em causa. Naturalmente, a forma como o Estado de direito é respeitada é normalmente óbvia. Mas algumas vezes pode ser mais complexa porque há leis que entram em conflito umas com as outras ou interpretações legais diferentes.”

Eleições nunca antes de novembro e as cenas inéditas na suspensão do parlamento

Com a atividade do parlamento suspensa agora até ao dia 14 de outubro, dia em que a rainha Isabel II discursa perante a Câmara dos Lordes, e sem novas eleições agendadas para essa altura, Boris Johnson está obrigado a participar no Conselho Europeu de 17 e 18 de outubro — altura em que poderá de ter de pedir aos líderes europeus o adiamento do prazo que já assegurou que não vai pedir.

Esta noite, disse o que pretende fazer. “Irei àquela cimeira crucial em Bruxelas, a 17 de outubro, e, independentemente de quantas formas este parlamento invente para me atar as mãos, vou lutar para conseguir um acordo que defenda o interesse nacional”, assegurou. Ou seja, para cumprir a lei, Boris Johnson terá de negociar nas 48 horas do Conselho Europeu um acordo de saída ou esperar que seja a União Europeia a recusar um novo adiamento. Aconteça o que acontecer, permanecem todas as dúvidas sobre o que se seguirá àquela reunião.

A noite parlamentar britânica só acabaria já muito perto das duas da manhã, com a cerimónia que oficializou a suspensão do parlamento e que ficou marcada pelos protestos da oposição. A cerimónia, que implica a deslocação do presidente da Câmara dos Comuns, seguido por todos os membros da câmara baixa, até à Câmara dos Lordes, decorreu por entre gritos de “Vergonha!” dos trabalhistas, muitos dos quais seguraram papéis a dizer “Silenced” [silenciados].

Esse momento acabaria por provocar uma pequena altercação, no momento em que um dos trabalhistas terá tentado impedir John Bercow de seguir no cortejo até à Câmara dos Lordes — onde não estiveram os deputados da oposição —, acabando por ser afastado por outros.

Bercow — que já tinha surpreendido pela forma como repreendeu alguns deputados durante a tarde — quebraria também o protocolo ao fazer um curto discurso antes de participar, contrariado, na cerimónia. Aí, assumiu que a suspensão não era regular e pôs-se, assim, ao lado da oposição. Assistiu, depois, a todos os passos protocolares visivelmente zangado e foi aplaudido pelos deputados da oposição — que tinham estado a cantar durante a cerimónia — quando regressou à Câmara dos Comuns.

Ali, começou as despedidas para as próximas cinco semanas e cumprimentou individualmente cada um dos deputados presentes na câmara baixa — só da oposição, os únicos que ficaram, irredutíveis, até ao final, contra a suspensão do parlamento.