Depois da tempestade, habitualmente, vem a bonança. Mas não desta vez – pelo menos, em relação ao comércio automóvel. As oficinas mantiveram-se abertas durante a crise da Covid-19, para servir quem necessitava de reparar os seus veículos, mas os stands de vendas foram obrigados a encerrar para conter a propagação da doença. Reabriram as portas na segunda-feira mas, até agora, os potenciais compradores parecem ter feito questão em não dizer “presente”.

Os fabricantes de automóveis – e todos eles estão a passar por problemas financeiros, uns mais graves que outros – fizeram tudo o que estava ao seu alcance para recuperar rapidamente da crise. Encerraram as fábricas atempadamente, o que lhes permitiu poupar a saúde dos empregados e, simultaneamente, reduzir os custos e impedir que os veículos se continuassem a acumular em parques com lotação esgotada. Depois, encerraram os stands, enquanto tentavam despertar as vendas online, com sucesso relativo, com o toque final a consistir em encontrar uma solução para garantir que os carros novos (e os utilizados nos test-drives) não estão contaminados, reconquistando assim a confiança dos clientes, assustados perante a possibilidade de contrair a doença.

Depois de tudo isto, resta apenas convencer os potenciais compradores que não só estão reunidas as condições de segurança para ir às compras de carro novo, como há bons negócios no mercado à espera de quem os queira aproveitar. E isto, em português corrente, pode traduzir-se por campanhas, promoções e descontos – argumentos de venda que funcionam em todos os sectores, do imobiliário ao dos telemóveis.

O que dizem os construtores?

Contactámos cerca de dezena e meia de fabricantes com representação no nosso país e todos foram prontos a confirmar que não estavam previstos descontos de arromba para atrair clientes após a paragem devida à Covid-19. Uma ou outra campanha sim, mas nada de suicídios económicos. Porém, no instante seguinte, muitos admitiram que não iriam faltar marcas “mais desesperadas” que, certamente, avançariam com descontos e promoções de fazer perder a cabeça.

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A Renault, tradicional líder de vendas, admitiu que as visitas às concessões não abundaram desde o início da semana, não prevendo a marca francesa recorrer a acções específicas para fazer os compradores retomarem o hábito de voltar a visitar os stands. A estratégia vai passar pelo retomar das campanhas que estavam no ar quando o coronavírus passou a ser o tema dominante, ou seja, incentivos à troca de veículos mais velhos, mais poluentes e menos seguros, por outros mais modernos e eficientes. A Dacia vai implementar uma estratégia similar para recuperar as campanhas que estavam no ar.

Da PSA e das suas quatro marcas (Citroën, DS, Opel e Peugeot) veio igualmente a confirmação que não houve enchentes, mas que ainda assim receberam alguns clientes para dar continuidade a acordos que estavam anteriormente em curso. Considera a PSA que o simples facto de abrir as áreas de venda foi positivo, pois “permitiu aos profissionais voltar ao trabalho e tornar as concessões mais equilibradas, em matéria de rentabilidade”.

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A SIVA e as suas três marcas de maior volume (Volkswagen, Audi e Skoda) congratulam-se com os passos dados pelo Grupo Volkswagen, que primeiro reabriu fábricas, para depois garantir a segurança de todos (funcionários e clientes) nas oficinas e, desde o início desta semana, nos stands de venda. A fase seguinte, que passa pelos incentivos à compra, ainda não está decidida, tanto mais que requer contribuição directa do conglomerado germânico.

Já a Fiat Chrysler Automobiles (FCA), com Abarth, Alfa Romeo e Fiat  de um lado, e a Jeep do outro, tem-se concentrado nas promoções online para gerar leads, a que os concessionários dão seguimento. Em termos de campanhas, já está no ar a que propõe comprar agora e começar a pagar apenas em 2021, que pode ser completada com um seguro de desemprego, ainda que com custo acrescido, para aliciar os que temem perder o posto de trabalho. Nesta fase de abertura gradual da economia, pós-confinamento, é ainda possível que a FCA Portugal venha a adoptar uma campanha que já existe em Itália, que visa explorar o temor dos contágios nos transportes públicos. Específica para os Fiat Panda e 500 mild hybrid e denominada Casa Móvel, a campanha prevê a entrega do veículo devidamente acompanhado de um kit de desinfecção.

Entre as marcas de luxo, a Mercedes avança que vai limitar as campanhas ao lançamento de novos produtos, além de outra específica para usados com certificação, enquanto a BMW vai apostar em propostas de financiamento para levar clientes aos concessionários.

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O que prevê a ACAP?

A Associação Automóvel de Portugal (ACAP), que criou o protocolo sanitário que permitiu a abertura dos stands dos concessionários, mesmo os de maiores superfícies, acredita que a solução passa pelo Estado criar incentivos à venda de carros novos, o que será tanto do interesse dos fabricantes como do próprio Estado. Para Hélder Pedro, secretário-geral da ACAP, “o mercado em Abril caiu para valores extremamente baixos e em Maio não será muito diferente”. Se tivermos em conta que só Abril “representou um rombo na tesouraria do Estado em 30 milhões de euros, mais ainda se lhe juntarmos o IVA correspondente”, afirma Hélder Pedro, é fácil deduzir que também o Governo achará esta quebra de vendas insustentável.

Para o responsável da associação, “a solução mais simples, e provavelmente com efeitos mais imediatos, é a retoma dos incentivos ao abate”, proposta já entregue e que a ACAP acredita que terá resposta positiva dentro de uma a duas semanas. Tradicionalmente, ao incentivo ao abate governamental os fabricantes juntam-lhe um valor similar, o que faz descer consideravelmente os custos de um carro novo, se houver um velho para mandar abater.

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Além de dinamizar o mercado de veículos novos, este sistema tem a vantagem de retirar da circulação carros mais antigos, por definição menos seguros e mais poluentes, algo que certamente alguns responsáveis governamentais deverão ver com bons olhos. Contudo e apesar da ACAP pretender que os incentivos se apliquem na aquisição de qualquer veículo novo, independentemente do combustível utilizado, Hélder Pedro não acha impossível que o Estado venha a impor veículos mais limpos, ou seja, eléctricos e híbridos plug-in.

Mas, afinal, as marcas fazem ou não descontos?

As marcas fazem descontos constantemente e, por vezes, de valores que surpreenderiam os próprios clientes. Começam por ser mais sensíveis aos argumentos de quem compra em maior quantidade, o que tipicamente inclui os rent-a-car, que ainda em 2019 representaram 29% do total de viaturas novas comercializadas. Marca que pretenda vender uma frota de 50, 100 ou 200 carros para as empresas de aluguer deve, desde logo, começar a pensar em descontos entre 30 e 40%, antes de impostos, é claro.

Outro grande cliente são as empresas de leasing, por quem passam a maioria dos veículos destinados às empresas, que trabalham com níveis de desconto da mesma ordem de grandeza. Face ao rent-a-car, as locadoras apresentam a vantagem de não obrigarem ao buy back, ou seja, à retoma do veículo passados 12 ou 24 meses.

Mas se estes descontos estão disponíveis apenas para os grandes clientes, há uns que podem ser – e muitas vezes são – propostos aos clientes particulares. Acontecem quando, próximo do final do mês, os concessionários necessitam de vender mais cinco veículos, por exemplo, para superar um objectivo que lhe garanta mais 1% ou 2% sobre o volume total do negócio do mês. Neste caso, chegam a ser praticados descontos similares aos dos grandes clientes.

E desta vez vai haver descontos?

Ainda é cedo para ter a certeza e depende de como o mercado reaja. Cá e no resto da Europa. As vendas pararam antes das fábricas encerrarem, na maior parte dos casos, pelo que os fabricantes estão cheios de carros em stock, de que querem desfazer-se quanto antes. Os stocks representam milhares de milhões de euros parados, o que é grave numa fase em que os fabricantes estão a ter de recorrer aos bancos, muitas vezes com avales dos Governos, para fazerem frente aos problemas de tesouraria.

De início, todas as marcas vão tentar escoar a produção pelos canais e preços tradicionais. Caso isso não funcione ou não atinjam os volumes esperados, vão ter de apelar aos clientes particulares e empresariais, incentivando a aquisição, dado que nesta crise não podem contar com a ajuda do turismo, o que limita o potencial de absorver veículos das empresas de aluguer.

Este foi o tema da Operação Stop da Rádio Observador, cujo podcast pode ouvir aqui.

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