Quando esta sexta-feira, 15 de maio, alcançou o simbólico marco de 500 dias na presidência brasileira, Jair Bolsonaro tinha, como vem sendo habitual, uma crise em mãos — aquela que foi criada pela demissão do oncologista Nelson Teich do cargo de ministro da Saúde, que ocupara nem há um mês e em substituição de Luiz Henrique Mandetta, despedido a 16 de abril pelo presidente, em plena pandemia de Covid-19.

Na verdade, assinalou a Folha de São Paulo no final desse mesmo dia, não tivesse Teich decidido abandonar o cargo, um dia depois de desafiar publicamente o chefe do governo brasileiro sobre o uso da cloroquina no tratamento de pacientes com a doença, Bolsonaro teria seguramente outra crise em mãos — nomeadamente a que se findou com o início da atual, e que se gerou depois de ser divulgado o vídeo de uma reunião em que terá pressionado o à data ministro da Justiça Sérgio Moro para trocar membros do comando da Polícia Federal. E que antes disso também tinha vindo substituir um qualquer outro escândalo — o que não faltou ao presidente brasileiro nos últimos 500 dias que passaram foram crises.

As contas são do jornal: a cada 50 dias que passam, Jair Bolsonaro tem de se haver com pelo menos uma crise. O top 10 também é da Folha de São Paulo e recupera os casos mais emblemáticos desde que o início do mandato, a 1 de janeiro de 2019.

O último é também o que dá mote ao artigo, numa altura em que os números relativos à Covid-19 não param de crescer no Brasil — que é já o quarto país mais afetado no mundo. Este sábado foram anunciadas 816 novas mortes e 14.919 novos casos de infeção pelo novo coronavírus no país. No total há 233.142 casos confirmados e mais de 15 mil óbitos registados. “Alguns vão morrer? Vão, lamento. É a vida”, disse já mais do que uma vez o presidente brasileiro sobre o assunto.

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As acusações de lavagem de dinheiro na campanha e o primeiro ministro a cair

O recentemente falecido Gustavo Bebianno, ex-presidente do Partido Social Liberal, que serviu de veículo à campanha de Jair Bolsonaro, foi o primeiro a cair. Ministro da Secretaria-Geral da Presidência, negou sempre qualquer envolvimento no esquema de lavagem de dinheiro revelado pela Folha em fevereiro de 2019, mas acabou por ser afastado, depois de uma querela pública com o vereador Carlos Bolsonaro, um dos filhos do presidente.

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A crise entrou para a história como o “escândalo dos laranjas” — assim se chama na gíria brasileira a uma candidatura em que um partido assume um candidato sem possibilidades de ganhar, para utilizar a campanha como veículo para lavagem de dinheiro — e envolveu também o então ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, que em outubro desse ano foi indiciado pela Polícia Federal como o mandante do desvio de verbas.

Braço de ferro com a Polícia Federal

Foi a primeira vez que Bolsonaro e Moro, agora ex-ministro da Justiça, mediram forças: a 15 de agosto de 2019 o presidente brasileiro anunciou aos jornalistas que ia mudar a superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro. “Motivo? Gestão e produtividade”, respondeu quando questionado.

Desmentido por um comunicado, que garantia que a troca, que nada tinha a ver com o desempenho do profissional, tinha sido há muito decidida por Sérgio Moro e Maurício Valeixo, diretor-geral da Polícia Federal, Bolsonaro chegou a ameaçar demitir também Valeixo, num braço de ferro que se prolongou durante vários dias.

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“Pergunta para o ministro da Justiça, Sérgio Moro. Já estava há três, quatro meses para sair o cara de lá. Quando vão nomear alguém, falam comigo. Eu tenho poder de veto ou vou ser um presidente banana. Agora, cada um faz o que bem entende e tudo bem? Não”, chegou a dizer Bolsonaro em conferência de imprensa.

Incêndios na Amazónia

“A nossa casa está a arder. Literalmente. A floresta amazónica, o pulmão que produz 20% do oxigénio do nosso planeta, está em chamas. É uma crise internacional. Membros da cimeira do G7, vamos discutir esta emergência de primeira ordem em dois dias”, começou por pedir, em agosto de 2019, o presidente francês no Twitter, alarmado com os incêndios que então grassavam na Amazónia.

Foi o que bastou para dar o pontapé de saída para uma crise que começou com o presidente brasileiro a questionar as motivações do homólogo francês para defender a Amazónia e envolveu ofensas à mulher de Emmanuel Macron, acusações de fogo posto a várias organizações não governamentais e até ao ator Leonardo DiCaprio.

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“A Amazónia é nossa. Não é como o Papa twittou ontem, não, tá?”, chegou a dizer Jair Bolsonaro, num ataque contra o Papa Francisco, que na véspera tinha publicado naquela rede social sobre o assunto.

As suspeitas de envolvimento no assassinato de Marielle e o live desde a Arábia Saudita

No final de outubro de 2019 a Globo revelou a notícia de que um dos suspeitos da morte da vereadora Marielle Franco se teria reunido com outro acusado no condomínio onde mora Jair Bolsonaro — mais: que tinha dito a um dos porteiros do edifício que ia para casa do futuro presidente.

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Então na Arábia Saudita, Bolsonaro reagiu violentamente e fez um live a partir de Riade em que desmentiu a notícia e qualquer envolvimento na morte de Marielle, assassinada em março do ano anterior com três tiros na cabeça e um no pescoço. “Porquê essa patifaria da parte de vocês? Deixem eu governar o Brasil! Vocês perderam!”, vociferou o presidente, ameaçando a TV Globo de impedir a renovação das licenças necessárias para a emissão.

As ameaças do regresso da ditadura militar

Aconteceu duas vezes em menos de um mês, primeiro em outubro de 2019, pela boca do deputado Eduardo Bolsonaro, depois já em novembro, através da voz do ministro da Economia: o Ato Institucional número 5, o decreto de 1968 que inaugurou o período mais sombrio da ditadura militar no Brasil, foi evocado como possibilidade (ou ameaça), para resolver eventuais radicalizações da esquerda.

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“Quem quer que seja que fale em AI-5 está sonhando”, disse na altura Jair Bolsonaro, em reação às declarações do próprio filho.

O adeus ao PSL

Um mês depois de ter dito a um apoiante para “esquecer” o Partido Social Liberal, nomeadamente porque o seu presidente, Luciano Bivar, estava “queimado”, Jair Bolsonaro formalizou finalmente, em novembro de 2019, um ano depois de ser eleito presidente, a sua desvinculação do PSL — onde se tinha filiado em 2018.

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“Anuncio a minha saída do PSL e início da criação de um novo partido: Aliança pelo Brasil. Agradeço a todos que colaboraram comigo no PSL e que foram parceiros nas eleições de 2018”, escreveu na altura no Facebook, estava o “escândalo dos laranjas” ainda na ordem do dia. Seis meses depois, Bolsonaro continua a não estar associado a qualquer partido.

O discurso nazi do Secretário da Cultura

Jair Bolsonaro nunca chegou a proferir uma palavra em público sobre a façanha de Roberto Alvim, secretário de Cultura do Governo, que em janeiro de 2020 resolveu parafrasear num vídeo oficial trechos de um discurso do ministro nazi da Propaganda, Joseph Goebbels.

“A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional, será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional, e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo, ou então não será nada”, disse Alvim, no vídeo, divulgado na conta oficial da Secretaria de Cultura brasileira, sob música de Richard Wagner, compositor favorito de Adolf Hitler.

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Na biografia de Goebbels que escreveu, Peter Longerich cita uma frase muito semelhante: “A arte alemã da próxima década será heroica, será ferreamente romântica, será objetiva e livre de sentimentalismo, será nacional com grande páthos e igualmente imperativa e vinculante, ou então não será nada”.

Um dia depois da publicação do vídeo, fortemente criticado naquele país, Jair Bolsonaro limitou-se a confirmar em comunicado a demissão do governante, a que Regina Duarte viria a suceder: “Comunico o desligamento de Roberto Alvim da Secretaria de Cultura do Governo. Um pronunciamento infeliz, ainda que tenha se desculpado, tornou insustentável a sua permanência. Reitero nosso repúdio às ideologias totalitárias e genocidas, bem como qualquer tipo de ilação às mesmas. Manifestamos também nosso total e irrestrito apoio à comunidade judaica, da qual somos amigos e compartilhamos valores em comum”.

A demissão do ministro da Saúde, versão Mandetta

Depois de semanas, em plena crise pandémica, a defender o contrário daquilo que Jair Bolsonaro fazia e dizia — nada a favor do isolamento social, nada contra as aglomerações de pessoas — o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, foi demitido a 16 de abril do cargo que tinha sido chamado a ocupar em janeiro de 2019.

“Não condeno, não recrimino e não critico o ainda ministro Mandetta. Ele fez aquilo que, como médico, achava que devia fazer ao longo desse tempo. A separação, cada vez mais, se tornava uma realidade. Mas não podemos tomar decisões de forma que o trabalho feito até o momento fosse perdido”, disse Bolsonaro ao anunciar o afastamento de Mandetta.

Bolsonaro demite ministro da Saúde ao fim de semanas de divergência

Na mesma ocasião, o presidente revelou o nome do seu sucessor: Nelson Teich. Exatamente um mês depois, o lugar está uma vez mais vago.

A saída de Sérgio Moro

Oito meses depois, Bolsonaro voltou à carga e anunciou uma vez mais a intenção de demitir Maurício Valeixo, o diretor-geral da Polícia Federal. Foi a gota de água para o ministro da Justiça, que no passado 23 de abril anunciou que abandonava o cargo.

A vários jornais brasileiros, também vários aliados de Sérgio Moro garantiram que a demissão de Valeixo era, para além de uma forma de o presidente assegurar o controlo da polícia brasileira, uma jogada para enfraquecer o próprio ministro da Justiça, que em agosto do ano passado já se tinha manifestado veementemente contra o afastamento do diretor-geral da PF.

Sergio Moro demite-se em protesto contra Jair Bolsonaro, que fica agora mais isolado do que nunca

Antes de sair, Sérgio Moro, o procurador principal do caso Lava Jato, que condenou o ex-presidente Lula da Silva, acusou Jair Bolsonaro de tentar interferir politicamente na Polícia Federal. “O presidente queria alguém a quem pudesse ligar, colher informações, relatório de inteligência. Seja o diretor, seja o superintendente. E, realmente, não é o papel da Polícia Federal se prestar a esse tipo de função”, disse Moro aos jornalistas. “Percebendo que essa interferência política pode levar a relações impróprias do diretor-geral, de superintendentes com o presidente da República, é algo que eu não posso concordar”.

A demissão do ministro da Saúde, versão Teich

Quando na passada sexta-feira apresentou a sua demissão, menos de um mês depois de ter tomado posse, o oncologista Nelson Teich explicou que o único por que tinha aceitado o cargo tinha sido “porque acreditava que poderia ajudar as pessoas” — ficou implícito que, se decidiu sair, foi porque percebeu que não era possível.

“A vida é feita de escolhas e eu decidi sair”. Ministro da Saúde brasileiro demite-se a menos de um mês no cargo

Depois de uma semana com vários casos — primeiro foi o decreto de Bolsonaro que incluiu salões de beleza, barbearias e ginásios nos serviços essenciais a funcionar durante a pandemia, sem o conhecimento do ministro da Saúde, que ficou a saber da medida pelos jornalistas, em conferência de imprensa; depois a polémica dos tratamentos com cloroquina, que o presidente quer disponibilizar a todos os doentes com Covid-19 e que o então ministro defendia que deviam ser administrados apenas a determinados doentes e com o respetivo consentimento —, a situação tornou-se insustentável.

“A vida é feita de escolhas e eu hoje escolhi sair”, disse Nelson Teich, quando anunciou a sua demissão.