Foi um fenómeno que a Atalanta soube transportar de uma temporada para a outra. No final da época passada, a equipa de Bérgamo fez história ao qualificar-se pela primeira vez para a Liga dos Campeões. Depois de um verão que normalmente leva a algum esquecimento, a expectativa geral — talvez aliada a uma generalização e à falta de informação — era de que tudo voltasse ao “velho normal” esta época. Ou seja, que a Atalanta caísse para o meio da tabela, que a campanha europeia não fosse assinalável e que a equipa de Gian Piero Gasperini entrasse numa fase de estagnação. Mas a temporada da Atalanta tem sido tudo menos isso.

Até à interrupção forçada, a Atalanta estava no quarto lugar da Serie A, é uma de quatro equipas que já têm presença assegurada nos quartos de final da Liga dos Campeões e marcou mais golos do que qualquer outro conjunto em Itália (70 em 25 jogos). Marcou sete vezes em três jogos e cinco noutros dois. É uma máquina de ataque bem oleada por Gasperini que sabe compensar alguma fragilidade defensiva com um sistema de três centrais que procura o espaço e pressiona alto — algo pouco usual e surpreendente em Itália. Acima de tudo isso, a Atalanta traz sempre consigo o síndrome de David que encontra o Golias. E foi assim que depois de perder os primeiros três jogos da fase de grupos da Liga dos Campeões conseguiu passar à ronda seguinte com duas vitórias e um empate, aniquilando por completo o Valencia nos oitavos de final.

A Atalanta, uma equipa com toque de mito(logia) que vai à Liga dos Campeões pela primeira vez

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Mas não se pode dizer que tudo isto é espírito e garra e vontade de chegar onde nunca se chegou. Existem segredos. E alguns foram revelados por Gian Piero Gasperini, o inspirador treinador que é a cara da equipa e que esta semana deu uma entrevista ao The Guardian. Logo a abrir, o italiano conta que costuma deixar pequenos recados aos jogadores no balneário — frases e citações de filmes, livros ou da vida real que indicam aos atletas qual é o objetivo para os dias seguintes. A mais recente, em concordância com a atualidade e com o mediatismo da série “Last Dance”, era de Michael Jordan: “Em 26 ocasiões, confiaram em mim para o lançamento final e falhei. Falhei uma e outra vez na minha. E é por isto que tenho sucesso”. Mas a preferida de Gasperini obriga a alguma interpretação.

“A melhor é a da alcateia de lobos. Pus uma fotografia de uma alcateia de lobos no balneário. Tem lobos à frente, alguns no meio e um atrás. Os que estão à frente marcam o ritmo. Os que estão a seguir são os mais fortes, são aqueles que têm de proteger toda a gente se forem atacados. Os do meio estão sempre protegidos. Depois há outros cinco, também fortes, mais atrás, para proteger de um ataque que venha daí. O último é o chefe e assegura que ninguém é deixado para trás. Mantém toda a gente unida e está sempre preparado para correr para qualquer lado, para proteger o grupo tudo. A mensagem é que um líder não aparece lá à frente, ele toma conta da equipa. E é isso que quero dos meus jogadores”, explica o treinador de 62 anos, que ganhou notoriedade ao orientar o Inter em 2011 mas nunca foi tão bem sucedido como agora.

Em 15 minutos a Atalanta acabou de pagar uma época inteira – e fez história na estreia na Champions

Depois da passagem por Milão — que não durou três meses e não teve qualquer vitória –, Gasperini foi convidado por Guardiola a assistir a alguns treinos do Barcelona, onde na altura o treinador espanhol ainda estava. O italiano estudou com Guardiola durante algum tempo, voltou a Itália para orientar o Palermo e o Génova e aceitou o desafio da Atalanta em 2016. De lá para cá, montou uma das equipas mais entusiasmantes da última década de futebol europeu. E precisa de citar “A Arte da Guerra”, o milenar livro de Sun Tzu, para explicar como conseguiu. “Defender torna-te invencível, mas se queres ganhar, tens de atacar. Isto resume o espírito e a mentalidade que eu quero que a equipa tenha. Mas há outra coisa que também é importante: a identidade que é criada na equipa tem de ser sempre reforçada. É preciso crescer e melhorar, todos os dias, porque se não melhorarmos, acabou. Aqueles que param, perdem (…) Digo-lhes sempre que nunca perdemos, ou ganhamos ou aprendemos”, indica Gasperini, que mais à frente revela o segredo de um grupo onde as duas referências têm mais de 30 anos mas não acusam a idade.

“Há mesmo um segredo. Quando atinges a maturidade necessária para entender que o trabalho leva a resultados, deixas de te sentir cansado. Nunca tivemos meios para grandes investimentos, por isso tivemos de encontrar jogadores na Europa com a mesma filosofia: capazes de se adaptar ao nosso estilo de jogo, com mentalidade vencedora, mentalidade atacante e vontade de trabalhar muito. Aqueles que acreditam nisso são um de nós, aqueles que têm medo vão embora”, atira o técnico italiano. Papu Goméz, o capitão, tem 32 anos e chegou em 2014; Josip Ilicic, a referência ofensiva, também tem 32 anos e chegou em 2017.

Presidente de Bérgamo diz que Atalanta-Valencia foi “bomba biológica”: “Se o vírus já circulava, 40 mil ficaram infetados”

De forma obrigatória, Gian Piero Gasperini comentou ainda a pandemia de Covid-19, que teve em Itália e na cidade de Bérgamo uma especial incidência. O jogo entre a Atalanta e o Valencia, na primeira mão dos oitavos da Liga dos Campeões, foi até conotado como uma “bomba biológica” para a disseminação do vírus. E o choque total, a verdadeira assunção daquilo que se estava a passar, só atingiu a equipa depois do voo de regresso de Espanha, já após a segunda mão e confirmada a passagem aos quartos. “Parecia que tínhamos chegado a um país em guerra. Foi tudo tão rápido, uns dias antes ninguém tinha noção do que podia acontecer. Quando voltámos a Bérgamo percebemos o quanto as coisas tinham mudado em dois dias. Fomos da euforia ao medo no espaço de 48 horas”, conta o treinador, que garante que nunca vai esquecer o som das ambulâncias no centro da cidade.

O primeiro objetivo, quando a Serie A recomeçar, está bastante claro na cabeça de Gian Piero Gasperini. “Vou pôr o aspeto emocional à frente e no centro de tudo. Estes jogadores têm uma grande ligação a Bérgamo, à cidade e aos adeptos. Vou falar de forma emotiva e o meu sentimento vai ser este: Bérgamo sofreu muito, este é o nosso momento de os fazermos sorrir outra vez”, termina o treinador. Mesmo com uma interrupção pelo meio, a temporada da Atalanta tem tudo para se tornar a melhor da história de um clube que tem nome de personagem mitológica e que insiste em ser um mito.