A 21 de dezembro de 2020, há precisamente um ano, a Galp anunciou o encerramento da refinaria de Matosinhos, fruto da queda da procura provocada pela pandemia de Covid-19 e da aceleração para a transição energética. “Nesse dia estava no turno da manhã, tinha entrado às 6h. Foi quando caiu a bomba. A maior parte dos trabalhadores foi apanhada na curva“, recorda José Azevedo, que trabalhou durante 23 anos como técnico operacional de produção desta unidade da Petrogal e foi um dos trabalhadores abrangidos pelo despedimento coletivo de mais de uma centena de pessoas.

A decisão apanhou muitos de surpresa, foi motivo de protestos e alvo de várias críticas vindas do poder político, sobretudo pelo facto de ter sido uma decisão que não foi negociada previamente e pela preocupação com o futuro dos mais de 400 postos de trabalho diretos e mais de 1.000 indiretos. E surgiram também, em setembro, as duras críticas de António Costa, que prometeu uma “lição exemplar” para a empresa, considerando que “era difícil imaginar tanto disparate, tanta asneira, tanta insensibilidade” como a petrolífera demonstrou nesta decisão.

Já a Galp justificou a “decisão complexa” do encerramento com base numa avaliação do contexto europeu e mundial da refinação, bem como nos desafios de sustentabilidade, a que se juntaram as características das instalações. “É inevitável que esta situação se agrave”, explicou José Carlos Silva, à data administrador da Galp, na audição, a 13 de janeiro deste ano, no Parlamento. Assegurava, então, que os trabalhadores seriam a principal preocupação da empresa neste processo.

Ao mesmo tempo, começavam-se a fazer as contas ao impacto que a decisão iria causar. Se, por um lado, o encerramento ajudaria a reduzir “900 mil toneladas de emissões de CO2 por ano”, por outro lado há o cenário económico: um estudo encomendado pela Câmara Municipal de Matosinhos à Universidade do Porto concluiu que o encerramento da refinaria representa perdas de 5% do PIB em Matosinhos e de 1% na Área Metropolitana do Porto, estimando-se a perda de 1.600 postos de trabalho no concelho e de 5.000 na Área Metropolitana do Porto”.

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Para já, a Galp manteve pouco mais de 100 colaboradores dos 400 com vínculo à refinaria em Leça da Palmeira, onde está a operar um centro logístico de despacho de combustíveis. E fechou já em outubro o processo de despedimento coletivo de 114 pessoas. A petrolífera está a qualificar os solos para avançar com o desmantelamento da unidades e posterior descontaminação cujo custo vai depender dos usos futuros.

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Um ano depois do anúncio do encerramento da Petrogal em Matosinhos, os trabalhadores afetados continuam à espera da ajuda prometida para a sua requalificação e reinserção no mercado e lamentam a forma como o processo de encerramento foi conduzido. Já a autarquia de Matosinhos, que diz ter sido surpreendida com a notícia, garante que a prioridade continua a ser os trabalhadores e a garantia de que o futuro projeto para os terrenos da refinaria será benéfico para o município. Da Galp, já houve um mea culpa quanto à forma como o processo foi gerido.

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Os 60 milhões de apoio do Fundo para a Transição Justa

Uma das ajudas previstas para os trabalhadores, face a este encerramento, vem do Fundo europeu para a Transição Justa. A região Norte está contemplada no mapa deste fundo, destinado a apoiar trabalhadores das indústrias que fecharam as portas por causa da descarbonização. No caso de Matosinhos, foi proposta uma verba de 60 milhões de euros, um valor que Luísa Salgueiro, presidente da Câmara de Matosinhos, considera que poderia ser superior. Segundo um estudo da Faculdade de Economia do Porto, o impacto deste encerramento na economia local é de 220 milhões de euros.

Os 60 milhões de euros não são suficientes quer para o apoio direto aos trabalhadores, quer para o apoio às Pequenas e Médias Empresas que foram afetadas diretamente pelo encerramento, quer para a criação de novos polos da área da investigação. Passa por aqui, mas não é suficiente, porque basta querermos criar um novo polo da Universidade do Porto que estas verbas não são suficientes. Haverá outras entidades diretamente afetadas pela redução do seu negócio, fruto do encerramento, haverá outras entidades beneficiárias e tudo isso são bons usos a dar às verbas que estão destinadas a Matosinhos, só que não poderão ser apenas essas”, disse a autarca ao Observador.

Estando ainda na fase de reclamação do valor, Luísa Salgueiro aponta para o primeiro semestre de 2022 a altura em que será possível “apresentar as candidaturas para a utilização das verbas”. O valor atribuído por este fundo será para financiar intervenções que permitam minimizar os impactos nos trabalhadores e no mercado de trabalho, formação e qualificação de recursos humanos para novas oportunidades de emprego viradas para a transição energética e a diversificação da base económica regional.

Para Hélder Guerreiro, da Comissão Central de Trabalhadores da Petrogal (CCT), este fundo não vem resolver o problema do desemprego. “O Fundo para a Transição Justa é para a formação e a requalificação dos trabalhadores. Este fundo, em si, não garante nenhum posto de trabalho. O que pode garantir é que estes trabalhadores têm formação, mas a formação em si também não resolve o problema a ninguém, porque os trabalhadores poderão estar muito bem formados mas não ter opções e saídas no mercado de trabalho e esta é a grande questão”, argumenta.

O que vai acontecer aos 290 hectares ocupados pela refinaria?

Outra das grandes dúvidas que surgiram com o encerramento da produção na refinaria de Matosinhos foi o destino dos 290 hectares que compõem os terrenos ocupados pela Petrogal. E, entre muita especulação, há uma garantia: “Matosinhos não aceitará nenhuma solução que traga impactos negativos para o ambiente ou para a Saúde Pública. Também cuidamos de estudar o que significaria uma refinaria de lítio e soluções de hidrogénio no nosso concelho e mantemos a posição de que não queremos esse tipo de instalação”, assegura a presidente da Câmara de Matosinhos. Também a Galp assegurou, numa reunião na câmara em dezembro do ano passado, que “não existe nenhum projeto de refinação de lítio” para aquele espaço.

Luísa Salgueiro refere que a petrolífera tem adotado, mais recentemente, uma postura de diálogo com a autarquia e que “no final do primeiro semestre de 2022 será apresentado o masterplan da Galp para aquilo que lá acontecerá”. Para já, sabe-se que a Galp aceitou ceder cerca de 40 hectares deste terreno para interesse público, estando a ser estudada a construção de um Centro Tecnológico da Energia e do Mar, a ser constituído por um laboratório para a energia e para o mar, uma incubadora de empresas, hospedaria de laboratórios industriais e um parque de pilotos industriais.

Certo é que o projeto para ocupar estes terrenos no futuro terá de respeitar o atual Plano Diretor Municipal (PDM) que prevê um uso de atividade económica para aquela área. “É de atividades económicas que se tratará daquilo que vai acontecer no futuro naqueles terrenos”, sublinha a autarca.

O “barco à deriva” dos trabalhadores, que ainda acreditam na reativação da refinaria

Do lado de quem foi mais afetado pelo encerramento da refinaria (os trabalhadores), o futuro ainda é incerto. César Martins, que trabalhou 22 anos na unidade como chefe de secção, recorda a falta de comunicação que diz ter existido por parte da empresa: “Recebemos simplesmente uma carta, nem sequer uma despedida do diretor, do superior hierárquico. Não houve grandes coisas. Recebemos a carta e viemos todos embora”, relembra.

Para este trabalhador, a decisão do encerramento fez com que produtos que eram unicamente produzidos naquela refinaria passassem a ter de ser importados. E que isso não foi positivo: “O grande mal é que estamos condicionados a quem vai ter esses produtos para vender. Vai haver muita indústria que vai ter de fechar. Uma coisa era ter os produtos aqui, outra coisa é ficar condicionado aos valores de mercado”, explica ao Observador, lamentando que muitos trabalhadores especializados e qualificados não estejam a ser aproveitados.

Já estamos assim há um ano. O ministro do Ambiente prometeu que iríamos ter formação, formação essa que nunca existiu. E a verdade é uma: despacharam-nos, forçaram-nos a assinar o despedimento, a maioria aceitou, e neste momento não temos nada”, lamenta César Martins.

“O facto de a empresa concorrer ao Fundo de Transição Justa significa que uma empresa transita de um tipo de energia para outra e tenta salvaguardar os trabalhadores. Mas, no fundo, não fizeram isso: forçaram os trabalhadores a despedir-se, a aceitar o dinheiro para perder o vínculo, e agora vão investir o dinheiro nas energias verdes. Mas, entretanto, os trabalhadores já estão desvinculados de uma empresa que está no topo há vários anos”, acrescenta ainda César Martins

José Azevedo assegura que ainda acredita que a reversão da decisão do encerramento é possível — “basta ter vontade política e empresarial”. Este ano, refere, os trabalhadores sentem-se como “um barco à deriva, sem saber bem o que fazer”, face às perguntas que ainda faltam responder. “Há produtos que tínhamos aqui e que nunca mais vão ser feitos: os asfaltos, os óleos, os aromáticos, nunca mais vão ser feitos cá em Portugal. Vai ter tudo de vir de fora. Não faz sentido”, alerta ainda.

Hélder Guerreiro, da Comissão de Trabalhadores da Petrogal, diz que o encerramento da refinaria foi “um crime económico e social para o país” e que, um ano depois, continua “sem justificação plausível”, acreditando que “continua a ser possível” reverter a decisão e evitar o encerramento.

Há uma crescente pressão sobre as unidades industriais relativamente à questão do carbono e às taxas de carbono. Mas que devem ser ultrapassadas, garantindo a transição energética com investimento para adaptar as instalações a esse novo paradigma. O que se deve tratar é mesmo de uma transição e não de encerrar grandes unidades industriais sem qualquer alternativa, produzindo cada vez mais desemprego e mais degradação social”, argumenta.

O coordenador da comissão de trabalhadores acredita que a refinaria pode ser reativada “com outros fins”, aproveitando o facto de “o desmantelamento ainda não ter arrancado, as unidades estarem intactas e prontas para serem reativadas, com um pequeno investimento”.

Em setembro, a Câmara Municipal de Matosinhos criou também um gabinete de apoio aos trabalhadores afetados pelo fecho da refinaria, no sentido de ajudar na reconversão profissional. Até agora, há 101 trabalhadores inscritos, sendo 37 pertencentes ao concelho de Matosinhos.

Matosinhos considera que Galp agiu “de forma incorreta”. Empresa reconhece que poderia ter feito melhor

Um ano depois, Luísa Salgueiro faz um balanço de todo o processo de encerramento da refinaria de Matosinhos. Para a autarca, “aquilo que a Galp fez há um ano foi muito mal feito”, tendo a petrolífera agido “de forma incorreta”.

Tudo poderia ter corrido melhor se não tivesse sido assim, se tivesse sido preparado previamente, se tivesse envolvido a comunidade, os próprios trabalhadores e se tivesse preparado uma decisão que era há muito tempo pretendida. Matosinhos pedia há muitos anos o encerramento da refinaria por questões ambientais. Podia ter sido tudo acautelado se nós tivéssemos promovido o equilíbrio entre o encerramento e a vida das pessoas e das empresas que seriam afetadas por ela”, destacou a autarca.

Segundo a autarca, a forma “repentina, súbita e abrupta” como a Galp comunicou a decisão “foi a pior possível”. “Se tudo isto tivesse sido desenvolvido de outra forma acho que teria sido menos doloroso. Seria doloroso, mas menos, porque teríamos acautelado o futuro quer daquelas pessoas, quer de todos os que sofreram diretamente com a decisão”, sublinha.

Em novembro, o presidente executivo da Galp Energia fez também um mea culpa parcial sobre a forma como a empresa conduziu o processo iniciado antes da chegada de Andy Brown ao cargo, onde reconheceu que a empresa deveria ter gerido melhor as relações com trabalhadores e com o Governo.

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