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A maior coleção de documentos em iídiche. O “tesouro” dos judeus que quase foi destruído pelos nazis

Este artigo tem mais de 2 anos

Uns esconderam os papéis nas roupas e enterraram-nos nos guetos. Outro guardou-os numa igreja. Após batalha judicial, o mundo pode ter um vislumbre da vida dos judeus antes da II Guerra Mundial.

15 fotos

São mais de quatro milhões de páginas sobre a vida dos judeus na Europa Oriental antes da II Guerra Mundial. Estiveram em risco de serem queimadas pelos nazis e de serem rasgadas pelos soviéticos. Sobreviveram escondidas nas roupas de judeus que depois as enterraram nos guetos e, mais tarde, resistiram nas paredes de uma igreja. Quem os preservou merece o rótulo de “mártir”. Aquele que é o “tesouro” judaico mais bem guardado está atualmente exposto no Centro de História Judaica em Nova Iorque, com uma versão online também, e chegou aos dias de hoje graças ao Instituto de Investigação Judaica YIVO, que digitalizou tudo.

É a concretização de um trabalho de sete anos, que custou sete milhões de dólares (cerca de seis milhões de euros). No dia em que se assinala 77 anos da Libertação de Auschwitz, estão presentes, nesta coletânea, os mais variados artefactos e formas de expressão de judeus de vários estratos sociais: as músicas que cantavam, os cartazes dos cinemas onde iam, as cartas trocadas entre familiares, os desenhos de crianças que queriam estudar ciência, entre outros.

Durante o processo, um dos grandes desafios foi a língua: os documentos estavam escritos em iídiche, o idioma considerado por muitos “um jargão”, que começou por ser falada pelos judeus ashkenazi, vinca Jonathan Brent, diretor executivo do YIVO, ao Observador. A língua varia entre regiões, “muitos judeus nem se compreendiam uns aos outros”. E a raiz da exposição assenta nisto mesmo: “Pegar em determinados materiais e traduzi-los para inglês”, colocando-os no contexto histórico adequado, para que a grande maioria das pessoas possa compreendê-los: “Não bastam os especialistas”, reforça.

Numa época cheia de estereótipos vazios, nos boatos sobre os judeus “não havia quase nada que caraterizasse quem eram realmente estas pessoas”. Faltava descobrir a história, o folclore, a organização da família, a comida, a evolução da consciência política, a literatura, e todo o ambiente social que os envolvia, com o propósito de “dissipar todo o tipo de generalizações brutas”.

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Num dos documentos digitalizados, o diário de Beba Epstein, a jovem fala sobre o primeiro filme a que assistiu, em 1932, em Vilnius (Lituânia). “Nunca vai imaginar sobre o que era o filme”, brinca. E o conteúdo foi genuinamente inesperado: um filme mudo baseado no romance “A Cabana do Tio Tom”, sobre as relações raciais nos Estados Unidos. Sem rodeios, Jonathan acredita que isto demonstra a “ambição da comunidade judaica, do seu interesse pelo mundo exterior”, porque estas pessoas “não agiam como se fossem águas esquecidas”.

Documentos judaicos que se achava terem sido perdidos durante o Holocausto

O Diário de Bebe Epstein

YIVO Institute for Jewish Research

Cresce-se com a ideia que os judeus “não sabiam nada, nem o nome das plantas nem como tirar o leite da vaca” e “um dos mitos mais polémicos promovidos pelos nazis” é que eles “só viviam nas cidades e só se interessavam por dinheiro”. Não é bem assim, salvaguarda o diretor, e basta ver os desenhos das crianças presentes na exposição, compostos pelas “mais belas imagens detalhadas de plantas, as fórmulas de matemática lindamente escritas, os desenhos anatómicos de girafas, com o nome de cada osso em iídiche”.

Esta “ambição não pode ser comparada à queda de um meteorito, não veio do ar”, é intrínseca “a séculos de devoção à aprendizagem”. Daí se explica a “extraordinária energia” que trouxeram para os EUA e arregaçaram as mangas para construir os seus próprios negócios. Ressalva, contudo, que há exceções, tais como os judeus ultraortodoxos que se dedicam apenas ao estudo do Tora.

Apesar disso, o lançamento da exposição “por mera coincidência” acontece numa altura em que “o mundo está a ir na direção errada” e, então, que seja encarado como uma forma de combate “à ascensão da ignorância e do ódio”.

E Jonathan vai mais longe: “Estes belos desenhos não podiam ter sido feitos por um povo que era espancado na cabeça constantemente por antissemitas. É, sim, de quem adora as suas tradições”. E esta vasta herança é razão de orgulho: “Se os jovens judeus ficarem atentos a isto dar-lhes-á orgulho em quem são e não no falso orgulho do chauvinismo”, sublinha.

O caminho destes documentos até aos dias de hoje

Fundado em 1925 em Vilnius, na Lituânia, o propósito do YIVO era recolher informação para que se pudesse estudar o judaísmo. O instituto começou por criar o movimento Zamler: colocaram anúncios em todos os jornais judeus conhecidos na época para recolher tudo o que fosse pertinente para traçar um perfil fidedigno da vida judaica. Como resultado, pessoas do mundo inteiro enviaram retratos das avós, diários pessoais, conversas de família, livros, panfletos políticos, todo o tipo de coisas. Até 1941, “nesses breves 16 anos”, tinha sido recolhido a maior coleção de material judaico do mundo, algo “fantástico”.

Aí, chegou a guerra com os nazis, que queriam substituir o YIVO pela Escola de Frankfurt, e desviar o foco da questão: através destes materiais, “os nazis queriam mostrar porque é que o povo judeu tinha de ser exterminado, colocando a nu as supostas conspirações para dominar o mundo, e porque é que o povo judeu era uma ameaça para a civilização ocidental”, constata Jonathan. Por essa razão, quando os nazis chegaram a Vilnius foram a YIVO, para saquear e destruir aquele “armazém de riqueza”.

Todavia, o contratempo dos nazis foi o mesmo que o grande desafio da exposição: a língua. Eles não percebiam o que lá estava escrito e tinham de recrutar judeus letrados o suficiente para ler, selecionar e distinguir o importante do acessório.

Entre os escolhidos, esteve o grande poeta judeu Avrom Sutzkever. Aquela “tropa” decidiu que não daria todos os materiais aos nazis, chegando a “escondê-los nas suas roupas, nos seus corpos”, expõe Jonathan.

Como o fizeram foi um milagre. Secretamente, eles tiraram as relíquias do edifício YIVO e enterraram-nos nos guetos. Se tivessem sido descobertos teriam sido baleados na hora. Foi uma ação tremendamente heróica”.

Outros papéis foram dados a amigos não judeus, que prometeram guardar e torná-los públicos no fim da guerra. Mesmo assim, cerca de 30 a 40% dos materiais foram destruídos pelos nazis.

No fim da guerra, o exército americano descobriu-os “enterrado em latas” nos guetos e, após uma triagem, enviaram-nos para o YIVO de Nova Iorque, onde estão agora, já que as instituições judaicas europeias tinham sido aniquiladas.

Seguiu-se a invasão soviética à Lituânia, em 1948, altura em que Estaline decretou ao Comité Central de Politburo a destruição da identidade judaica. Aí, um homem “maravilhoso”, lituano e não judeu, chamado Antonio Opus interveio e, em segredo, salvou os documentos: escondeu-os na igreja de St. George de 1948 a 1989. As pessoas questionam a razão de Opus ter tido esta atitude, contudo “ninguém faz ideia”. “Talvez fosse apenas um homem decente, que acredita na cultura humana e não numa cultura alemã, numa francesa ou numa judaica”, tenta esclarecer Jonathan, recordando que “correu risco de vida ao fazê-lo”.

Documentos judaicos que se achava terem sido perdidos durante o Holocausto Documentos judaicos que se achava terem sido perdidos durante o Holocausto

Jonathan Brent durante a inauguração da exposição, em Nova Iorque

Thos Robinson

Em 1991, o governo da Lituânia encontrou estes documentos e anunciou-o publicamente. Nem os arquivos escaparam a uma batalha legal, com Nova Iorque a querê-los e a Lituânia a recusar enviá-los para lá, pois tinha sido o país a recuperar os arquivos.

Preso numa ação judicial, Jonnathan, quando integrou a equipa do YIVO em 2009, ciente de que isto não se resolveria “nem nos próximos 100 anos”, foi à Lituânia e propôs que “cuidassem do bebé juntos”: preservar, limpar, tornar legível e criar ligações entre os arquivos em conjunto. Após sete anos e sete milhões de dólares, esta história de quase aniquilação total “deixa agora de ser desconhecida para a grande maioria dos judeus”.

A educação como parte da fórmula para a tolerância religiosa

Primeiro, é preciso ter cuidado com um pormenor, avisa Brent: quando se fala em estereótipos, eles não são apenas entre os não judeus e os judeus, há ideias pré-concebidas até dentro da própria comunidade.

Feita a ressalva, garante que a educação tem limitações, visto que um nazi pode ser alguém extremamente culto. Para ele, a educação “não é uma panaceia, não é uma cura por si, mas sem ela tudo o que temos são generalizações que crescem à volta da mesa da cozinha”.

E a pergunta impõe-se: como é que, com o simples ato de olhar para estas fotos, se educa para a tolerância religiosa? “Se se olhar para elas com uma mente neutra”, desafiam-se os estereótipos e percebe-se que não passa disso mesmo, elucida Jonathan. Por exemplo, os nazis diziam que os judeus tinham sido treinados pelo Talmude para perturbar os vizinhos, no entanto, basta ler para perceber que houve cooperação e uma vivência comum entre vizinhos.

Levanta ainda o pano de outra história. Em 1970, em Nova Iorque, um comentador de rádio afro-americano, Julius Lester, era “raivoso e todos os dias denunciava professores judeus das escolas públicas”. Um dia, um rabino ligou para o programa de rádio e desafiou-o a aprender consigo coisas sobre o judaísmo. Lester aceitou e, aliás, antes terá admitido não saber muito sobre o tema. O desfecho? Acabou por converter-se à religião.

Aquilo que Jonathan está a querer dizer é que a educação funciona, mas não chega, e “requer o empenho dos líderes políticos”, atira, frisando que a mudança “é complexa e difícil”.

Enquanto se aguarda por essa mudança, o YIVO faz o que lhe compete. Ao Observador, o diretor revela que há já outra exposição a ser preparada sobre a história do jovem Yitzchak Rudashevski, que escreveu num diário como é viver no gueto de Vilnius. Outra novidade: há já interessados em criar documentários e filmes com base nestes documentos. E o sistema educativo pode estar próximo de dar um novo passo: na Lituânia, os arquivos estão a ser traduzidos para serem incluídos nos programas das escolas públicas. O desejo agora é que atravesse fronteiras e que, “só Deus sabe, talvez chegue a Portugal”.

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