Um engenheiro inventa uma máquina extraordinária. Um motor nuclear tão potente que é capaz de produzir em segundos a energia necessária para quase tudo. A produtividade das fábricas quintuplicará, os campos encherão celeiros à velocidade da luz, a luz espalhar-se-á por toda a terra e a terra crescerá numa abundância nunca vista.

O engenho, contudo, traz um senão. De cada vez que trabalha, “produz Deus”. O criador do Universo, que está em todas as coisas, liberta-se delas de cada vez que a máquina funciona e passa a vaguear pelo mundo. É o regresso de Deus através da técnica.

O enredo da Fábrica do Absoluto é este. É escrito naquele tom centro-europeu que encontramos em Joseph Roth, herdeiro de Voltaire, que mistura uma falsa ingenuidade e uma sensação de que todas as personagens são de algum modo estúpidas com uma tese entre o cómico e o perturbador. Como se todos, das personagens ao leitor, estivessem a ser gozados e as contradições do nosso mundo desmascaradas com a maior das facilidades.

Aqui, o ponto “contraditório” é bastante fácil de identificar. A consciência de que o mundo da produção e do negócio, do modelo capitalista em geral, e a moral religiosa são inconciliáveis. O desenvolvimento da história, dada a premissa, é previsível:  os trabalhadores que contactam com a máquina convertem-se, abandonam os seus trabalhos, fundam cultos, tornam-se missionários prosélitos, anacoretas, inúteis beatos, enfim: a abundância prometida pela máquina transforma-se em escassez, já que todos os agentes necessários à atividade económica abandonam os seus postos, arrependidos da imoralidade dos seus lucros. Os banqueiros ganham a consciência de Zaqueu, os comerciantes, cientes de que todo o chão é chão sagrado, não querem ser vendilhões do templo e assim fica reforçado o antagonismo entre o modelo económico da sociedade e a sua moral.

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A ideia, embora velha, não perde graça. A longa tradição de incompatibilidade entre o mundo de Deus e o mundo dos Homens vem de Santo Agostinho e da sua divisão entre a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens, passa pela lenda do Grande Inquisidor tal como a conta Dostoievski e vem à baila sempre que se pensa sobre o papel da religião no espaço público. O que é curioso no caso da Fábrica do Absoluto é que, pelo modo como o problema é apresentado, os dois mundos parecem falir. Por um lado, o abandono de todas as profissões mostra que a religião conduz à miséria. Passado o momento da conversão, o indivíduo não desaparece miraculosamente da história, pelo que, se toda a sociedade passar pelo mesmo, surgirá um enorme problema prático. A religião depende, assim, da impiedade para poder subsistir. Só porque há uns quantos que resistem aos encantos divinos e às platitudes contemplativas é que outros se podem dedicar a isso mesmo.


Título: A Fábrica do Absoluto
Autor: Karel Čapek
Tradutor: Anna Almeida
Editora: Páginas: 208
Preço: 16€

Por outro lado, a obsessão produtiva, a tentativa de concentrar todo o trabalho em técnicas cada vez mais apuradas, cria também uma população inútil e um sistema com tendência a devorar-se a si próprio. A produção massiva desvaloriza os produtos, de tal modo que a abundância lhes tira o valor, condenando assim a atividade à extinção.

Não é preciso ser uma grande águia, nem sequer um pequeno canário, para calcular o prazer com que este livro foi lido entre os movimentos de esquerda revolucionária do século XX. A subversão do modelo capitalista aliada à apologia do materialismo, a demonstração ficcionada de uma aliança entre os grandes inimigos da classe operária – igreja e capital –, para mais exibidos numa lógica escorreitíssima e com um humor cativante só podiam ser celebrados pelos aliados ideológicos da Fábrica do Absoluto.

O problema de todas as explicações simples, contudo, é que dificilmente não são simplistas. Qualquer fenómeno social explicado a partir de duas premissas deixa de fora uma imensidão de mundos. Claro que se entendermos a religião como uma imensa revolução milenarista, o mundo fica incapacitado; claro que se entendermos a economia de produção como uma viagem descontrolada em busca do preço mais baixo, também esta colapsa; o problema, contudo, é que as sociedades não são princípios; têm princípios, o que é muito diferente de princípios que têm sociedades. Há milenarismo religioso, mas também houve ordens guerreiras e mosteiros agrícolas, do mesmo modo que nem todas as economias se entregam a crises de excesso de produção. Encontrar os princípios sociais implica ter a consciência de que, dentro dos princípios que funcionam em simultâneo, há sempre uma hierarquia em que uns balizam outros.

Talvez seja difícil, para um teórico, conceber que uma religião pode ter uma tendência milenarista sem que a abrace completamente, e que esse não seguir até ao fim a própria ideia faz parte do seu princípio. Trata-se de um problema filosófico que já está identificado nos primeiros livros da Física de Aristóteles, mas cuja resolução continua a ser difícil. O que é que faz com que, a respeito dos Homens, se possam identificar tendências mas não certezas. Porque é que podemos prever que uma percentagem grande de seres humanos casará, mas não conseguimos dizer, no particular, que homens específicos casarão ou não?

É sempre fácil fazer crítica a partir de princípios e dos ridículos dos seus exageros; o difícil é perceber que princípios é que, de facto, balizam outros.