A “geringonça” terminou oficialmente em 2019 (embora PS, PCP, BE e PEV tenham mantido entendimentos fundamentais nos anos que se seguiram até à queda de 2021), mas ainda mexe com os comunistas. E na hora da saída, Jerónimo de Sousa foi confrontado com o peso desse legado, evidenciando menos carinho (e muita memória seletiva) por esse passado recente do que o líder socialista mostrou na reação à alteração de liderança no PCP.

Na conferência de imprensa onde explicou os motivos da sua saída, Jerónimo de Sousa foi questionado sobre se a “geringonça” era um marco na sua era de 18 anos à frente do PCP. A resposta do comunista não deixou grande margem para dúvidas: “Não, de todo.” Foi um período que os comunistas não guardam com saudade e de onde, hoje, retiram apenas as suas conquistas, apontando sempre o dedo à falta de empenho do PS em ir mais longe em algumas matérias.

Foi tantas vezes responsabilizada pelos maus resultados eleitorais que o PCP foi tendo nos últimos anos, vista como castradora do perfil de protesto comunista. Mas publicamente, Jerónimo de Sousa colocou sempre a “geringonça” como a prova da capacidade comunista em influenciar decisões de governação e de não estar acantonado nem condenado a ser um partido de protesto. Na hora da saída, não lhe retirou o tapete: “Estivemos certos a afastar a direita do poder, estivemos certos nos passos seguintes”.

Mesmo com um PS muito “contrariado e recuado”, avançou-se com “coisas muito importantes” para o país, disse na conferência de imprensa deste domingo. E lembrou a reposição das pensões, os manuais gratuitos, os passes sociais. “Mas conforme os anos se foram sucedendo, verificámos que o PS tentava ficar para trás e não corresponder a propostas concretas, fundamentais”, nomeadamente aumento dos salários e das pensões, defesa do SNS, e legislação laboral. Ou seja, o responsável pelo falhanço foi o PS.

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A memória é diferente da de António Costa. No Twitter, em reação à saída de Jerónimo de Sousa da liderança do PCP, o socialista focou-se não na parte final dessa solução governativa, mas antes no seu arranque. E aí continua a atribuir os créditos ao PCP, coisa que já tinha feito durante um debate parlamentar irritando até o Bloco de Esquerda — a génese da “geringonça” acabou até a ser disputada no arranque da campanha das lehislativas de 2019.

O que para Jerónimo não foi marcante na sua liderança é o que fica na memória de Costa como mais importante. “Foi ele que deu o primeiro, corajoso e decisivo passo que, em novembro de 2015, abriu as portas a uma nova relação na esquerda portuguesa”, escreveu no Twitter em relação a Jerónimo de Sousa, num recuo ao primórdios da geringonça.

Desse tempo, Jerónimo prefere registar apenas duas coisas: que foi essa solução governativa que tirou a direita do poder (PSD e CDS tinham conseguido, juntos, mais votos nas eleições, mas não tinham maioria no Parlamento) e que caiu pela falta de empenho do PS de Costa.

Com Costa admitiu que a relação mudou porque o PS “não está a cumprir” o que chegou a estar planeado com a “geringonça”. O problema não é Costa individualmente, sublinhou: o Governo “não está a resolver os problemas e tinha a consciência antes disto de que não os iria resolver”. Tudo sem “pôr em causa o relacionamento normal, incluindo individual”, que com o líder socialista foi sempre bom.

Mesmo depois do fim da “geringonça”, nos debates parlamentares António Costa guardou o grosso da hostilidade para o Bloco de Esquerda, protegendo o PCP da responsabilização pela precipitação de uma crise política. No Orçamento de suplementar de 2020, em plena pandemia, o PCP votou contra pela primeira vez com Costa como primeiro-ministro. No de 2021 foi o Bloco que cortou o equilíbrio de forças de esquerda e só na votação para o OE 2021 é que as duas forças políticas fizeram capotar o segundo Governo de Costa, chumbando a proposta do Governo. Mas no fim de todas as contas, a acusação de “traição ao eleitorado de esquerda” é mais depressa apontada por Costa aos bloquistas do que as comunistas, com quem a relação foi sempre mais diplomática.

Nas legislativas seguintes, colocou-se, então, outra questão: seria o PCP penalizado nas urnas por ter cortado o apoio a Costa? Os comunistas tiveram o pior resultado de sempre, em 2022 e Jerónimo de Sousa ainda se desdobra em explicações, quase um ano depois.

“O PS não tinha resposta e colocou-se a questão: como poderíamos continuar a ter compreensão política quando no fundamental desvalorizou as nossas propostas?”. O PCP sabia que o PS ia tentar aproveitar-se da crise política e “dramatizar”, assegurou na conferência de imprensa. “E agora? O que faz o PS com esta maioria absoluta? O que está a fazer não é brilhante e merece uma profunda crítica”, pergunta e responde ele mesmo.