Pouco mais de três horas e uma ronda de questões que ficou pelo caminho. Mário Centeno, ministro das Finanças entre o final de 2015 e junho de 2020, inaugurou as audições à segunda-feira na comissão parlamentar de inquérito à TAP, mas teve pouco a acrescentar sobre os temas que os deputados queriam aprofundar: fundos Airbus, os 55 milhões pagos a David Neeleman e o estado da TAP quando o primeiro Governo de António Costa chegou para tomar de novo o controlo estratégico da companhia.

O tema nem era central nas Finanças, em 2015 e 2016, que só tinha três preocupações vertidas no programa do Governo: não podia haver impactos orçamentais relevantes na sequência da reconfiguração da privatização, a TAP não podia entrar no perímetro das administrações públicas e “deveria assegurar um modelo de governação eficiente, que servisse as boas práticas internacionais e que permitisse que o Estado tivesse supervisão sobre os compromissos estratégicos” que o Governo queria fazer valer na companhia. Foram três horas sem grandes sobressaltos para Mário Centeno, que deixou alguns nós soltos que só outro ex-governante poderá ajudar a atar: Pedro Nuno Santos.

1 Foi em novembro de 2015 que saiu um Governo, o curto segundo Executivo de Passos Coelho, e entrou outro, o primeiro Governo de António Costa que teve Centeno como ministro das Finanças. Na passagem de pasta, garante o atual governador do Banco de Portugal, não havia qualquer referência à TAP, pelo menos nos documentos que foram entregues às Finanças. A sua antecessora na pasta foi Maria Luís Albuquerque. Só à medida que as negociações com a TAP se desenrolaram é que houve reuniões no Ministério sobre essa matéria e a Parpública era o veículo de transmissão. Centeno sabia que a empresa estava numa situação de “extrema fragilidade financeira” ainda antes de ser ministro, quando teve uma reunião “noutra órbita”, ainda antes de ser ministro. Mas não explicitou que encontro foi esse.

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2 Já depois da passagem de pasta com o anterior Governo, também a Parpública terá passado informações ao novo Executivo sobre a TAP, e em vários momentos. Mas há uma data no centro da discórdia: 9 de dezembro de 2015. O ex-presidente da Parpública, Pedro Pinto, afirmou no parlamento, em abril, que manteve uma reunião a 9 de dezembro onde estiveram os então novos ministros Pedro Marques (Infraestruturas) e Mário Centeno (Finanças), os secretários de Estado, Guilherme d’Oliveira Martins e Ricardo Mourinho Félix (que viria a ficar com a tutela da Parpública) e vários membros dos dois gabinetes. Nessa reunião, Pedro Pinto diz que passou aos governantes um dossiê com as peças mais importantes sobre a operação da TAP e uma pen com toda a informação, e estava preparado para fazer um resumo da privatização. No fim, diz ter estranhado que não lhe fizessem perguntas. A existência dessa reunião já tinha sido colocada em causa por Mourinho Félix, que esteve em maio na comissão de Economia, e negou ter participado nela. Agora, foi a vez de Mário Centeno rejeitar a participação. E até tem um motivo para se lembrar desse dia: “É o meu aniversário”.

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“Os dias nas Finanças eram muito longos e cabia quase tudo. Se se lembrar do que estava a acontecer com o Banif, consegue fazer jus a essa minha frase”, começou por responder o ex-ministro. Garantiu que não havia no seu “gabinete nenhum registo nessa reunião” e que o secretário de Estado “não esteve nessa reunião”.

Centeno lembra que nas semanas seguintes “houve um crescendo de reuniões em termos de número e de incidência” com a Parpública, mas que não esteve nessas reuniões. Centeno vincou depois que trabalhou com o presidente da Parpública mais de um ano e que houve passagem de informação e um “trabalho muito apurado entre Parpública e o Ministério, podia não ser com o presidente, podia ser com assessores que trabalharam neste dossier”.

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3 Ainda não foi Mário Centeno a dar resposta a uma das questões que mais tem feito palpitar a comissão de inquérito: afinal, como foram calculados os 55 milhões dados a David Neeleman para sair da TAP? “Escolheu a pessoa errada para fazer essa pergunta”, respondeu Centeno. “Nesse momento não tinha nenhuma visibilidade sobre o processo, seria especulativo da minha parte responder”, diria ainda. “Nada se passou no ministério das Finanças enquanto fui ministro e presidente do Eurogrupo, quando tinha dois empregos, nenhuma decisão estratégica foi tomada no ministério sem que o ministro das finanças estivesse estado na mesa”, garantiu. E foi mais além. “Nem eu nem os secretários de Estado em que deleguei competências, Mourinho Felix e Álvaro Novo, participaram em reuniões conducentes à aquisição de participações sociais na TAP”, assegurou Centeno, numa ideia que repetiria várias vezes ao longo da audição.

4 Passando para 2020, e para o empréstimo de 1200 milhões que a companhia recebeu do Estado, Centeno admitiu que todos os cenários estiveram em cima da mesa. Incluindo a nacionalização. Acabou por avançar a opção, aprovada por Bruxelas, dos auxílios estatais de emergência e à reestruturação concedidos a empresas não financeiras em dificuldade. Isto porque “outras modalidades não estavam disponíveis para a TAP”, como o apoio Covid, porque em dezembro de 2019 a TAP já não era uma empresa viável, ou a compensação de danos, uma via “potencialmente alternativa” mas travada porque o volume de apoio que o Estado podia dar “era demasiado curto”. Se havia a probabilidade de recuperar o empréstimo àquela data? “Era obrigação da empresa fazer com que isso acontecesse”, sublinhou Centeno. Mas acabaria por admitir: “A probabilidade não era muito grande, mas não governamos com base nas probabilidades”.

Centeno foi ainda questionado sobre a proporcionalidade do apoio dado à companhia, já que a TAP recebeu 10% de todo o layoff a nível nacional, Centeno lembra que o apoio por avião não era diferente do que foi recebido por empresas como a Lufthansa ou Air France. “A Comissão Europeia olhou para os indicadores e mediu a proporcionalidade deste número”, considerou.

Confrontado com o facto de a Lufthansa pesar nove vezes menos na despesa pública alemã do que pesa a TAP, Centeno sublinhou que a TAP pesa mais no PIB nacional do que a Lufthansa no PIB alemão. “O debacle da TAP teria consequências para Portugal que [o colapso da] Lufthansa não teria para a Alemanha”.  E a propósito da Lufthansa garantiu não ter tido conhecimento de qualquer proposta de compra. “Nunca vi proposta da Lufthansa. Não a conheço”.

5 Cartas conforto, garantias, direitos potestativos, obrigações do Estado. Já várias caracterizações têm sido atribuídas aos deveres que ficariam para a Parpública, o mesmo é dizer para o Estado, caso a TAP deixasse de pagar as suas dívidas bancárias. Em 2015, na privatização, ficou determinado que o Estado ficaria com o direito potestativo que o obrigava a ficar com a TAP, e como tal com a sua dívida, caso entrasse em incumprimento. O acordo em 2017 foi revisto. O Estado deu garantias sobre as prestações acessórias realizadas pela Atlantic Gateway. Mário Centeno explicou que a grande diferença é que “em 2015 não havia limite para as exigências do Estado e nestas [2017] há um limite”, além de que o limite foi  “altamente revisto, uma redução 70% passados 2,5 anos. Essa exposição foi verdadeiramente reduzida nesse momento do tempo, depois veio o Covid”. E deixou a frase em suspenso. A redução da dívida permitiu reduzir a exposição do Estado. Mário Centeno não ficou com os méritos. Deu-os à gestão.

Nas explicações dadas pelo ex-ministro das Finanças, em 2015, as tais cartas conforto – que tanta troca de acusações tem originado entre o PS e o PSD – obrigariam o Estado a assumir toda a dívida passada, presente e futura. Na reconfiguração, “o que foi feito foi restringir o montante de dívida que estava ao abrigo das garantias emitidas pela Parpública que incidiam exclusivamente nos 465,9 milhões das prestações acessórias e que em 2017 que foram depois reduzidas em 2020 para 141,9 milhões de euros. “Nunca foi acionada esta garantia”.

Em 2017 substituiu-se o direito potestativo pela prestação de garantias a 110% das prestações acessórias. O que significa que a Parpública poderia ter de substituir a Atlantic Gateway na realização dessas prestações. E considerando os 110% das prestações acessórias, Centeno faz as contas: em 2017 esse compromisso somava 512 milhões (270 milhões da Parpública e 242 milhões pela Atlantic Gateway) e no primeiro aditamento essa exposição é diminuída para 156 milhões de euros, 110% dos 142 milhões de prestações acessórias (82 milhões da Parpública e 74 milhões da Atlantic Gateway).

E com isto Centeno responde à pergunta sobre o Tribunal de Contas que dia que o Estado ficou com maiores riscos com recompra. E até assumiu que era a sua interpretação que “até pode diferir do Tribunal de Contas : – já tive vários momentos em que a minha interpretação diferiu”. Centeno ainda foi um pouco contra corrente de elementos como Lacerda Machado, ex-administrador da TAP e consultor do Governo, e de Mourinho Félix, que foi secretário de Estado de Centeno, ou até mesmo de Pedro Marques, dizendo que não podia dar garantir que essas cartas conforto assinadas em 2015 seriam ajudas de Estado ilegais? “Abria-se o debate. Se eram ou não não conseguimos saber. Haveria esse debate”.

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6 O que é que lhe suscita o nome Airbus? À pergunta dirigida por Bruno Dias, Mário Centeno sorriu e respondeu: “Provavelmente a última viagem que fiz”. Até porque sobre os fundos Airbus, que os deputados insistiram em saber o que conhecia o ex-ministro das Finanças sobre o assunto, garantiu não ter tido conhecimento enquanto titular da pasta. E só teve conhecimento quando se tornou público. “Até iria responder que [tive conhecimento] no mesmo dia que o senhor deputado”, mas recuou, para especificar: “Quando se tornou público” e concretizar: “Quando saí do Ministério das Finanças não sabia nada sobre os fundos Airbus”. E com isso ainda acrescenta: “Ainda não sei muito bem o que se passou. Não sei se consigo responder. Preciso de mais informação para responder”. Tal como já tinha referido, soube da existência desse “mecanismo” muito recentemente. “E não vou conseguir ajudar nessa interpretação”.

7 Lacerda Machado lançou a bomba na comissão parlamentar de inquérito quando foi ouvido. Tinha sofrido pressão política do secretário de Estado das Infraestruturas, Alberto Souto de Miranda, para votar contra o orçamento da TAP de 2020. Confrontado com esta declaração, Mário Centeno respondeu – foi mesmo a sua última resposta – :“O orçamento foi aprovado. Podemos questionar o que aconteceu para que o orçamento fosse aprovado. O Ministério das Finanças esteve de acordo com que o orçamento fosse aprovado”. O que deixa em aberto a questão para o seu colega de Governo, na altura, Pedro Nuno Santos, que vai ser ouvido na comissão de Economia e Obras Públicas, sobre a TAP, esta terça-feira.

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