No dia 1 de agosto Henrietta Lacks teria feito 103 anos, mas a norte-americana só chegou a completar 31, morreu a 4 de outubro de 1951 com um cancro do colo do útero agressivo. No dia que marcaria o seu aniversário, a família anunciou que tinha chegado a acordo com a farmacêutica Thermo Fisher Scientific que teve largos lucros com as células cancerígenas mortais da afrodescendente.

Em 1951, os médicos do Hospital Johns Hopkins, em Baltimore — onde Henrietta vivia com o marido e cinco filhos —, retiraram uma amostra das células do cancro da doente sem o seu conhecimento ou consentimento — inclusivamente durante a autópsia — e depois partilharam-nas com os investigadores da Universidade Johns Hopkins. E foi também sem o conhecimento ou consentimento dela ou da família (após a sua morte) que as células foram amplamente usadas na investigação científica em todo o mundo.

As células cancerígenas de Henrietta Lacks tornaram-se tão interessantes aos olhos dos médicos e cientistas porque nunca antes tinha sido possível replicar células humanas em laboratório, uma prática agora rotineira nos laboratórios de investigação, em particular investigação biomédica. As linhas celulares então criadas, que se replicavam continuamente, foram consideradas “imortais” e usadas para o desenvolvimento de vacinas, como contra a poliomielite, no tratamento de doenças, como cancro ou gripe, na investigação de leucemia, da infeção por VIH e outros agentes infecciosos, e até viajaram para o espaço.

Nos 60 anos que se seguiram à morte de Henrietta Lacks, a utilização das células HeLa (como foram chamadas, com base no nome da norte americana) foi citada em mais de 110 mil publicações científicas e deu origem a, pelo menos, três prémios Nobel, de acordo com os Institutos Nacionais de Saúde norte-americanos, que compilaram todos os eventos relevantes e avanços científicos conseguidos com o uso destas células.

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A família apresentou um processo contra a farmacêutica Thermo Fisher Scientific em outubro de 2021, por ter vendido as células e ter tentado obter direitos de propriedade intelectual sobre os produtos que as células ajudaram a alcançar, sem nunca ter compensado a família ou sequer ter procurado obter autorização para estas atividades.

Esta terça-feira foi anunciado que um acordo foi alcançado sem, no entanto, serem dadas informações sobre os termos desse acordo que evitou que o processo corresse no tribunal. Um dos advogados da família, Chris Ayers, disse que outros processos semelhantes se seguirão, conforme relata o jornal The New York Times.

A Universidade Johns Hopkins diz nunca ter tirado proveitos financeiros das células — ao contrário de muitas outras empresas farmacêuticas além da Thermo Fisher Scientific —, mas também nunca reconheceu que tinha feito algo de errado ao colher as células sem autorização, esconder a identidade da mulher e distribuído pelo mundo. Pode ter sido legal, mas não foi ético, disse Keisha Ray, professora assistente do Centro McGovern de Humanidades e Ética da UTHealth Houston, ao STAT News.

Especialistas em assuntos raciais e de medicina, citados pelo jornal, veem agora este acordo como uma forma de pressão crescente sobre a comunidade médica para que possam admitir os erros do passado e compensar o mal causado por práticas anteriores. “Muitas pessoas não sabem quantos grupos de pessoas foram violentamente usados, assassinados, vítimas de experiências e torturados”, disse Keisha Ray.

O sofrimento dos negros permitiu inúmeros progressos médicos e lucros sem a justa compensação e reconhecimento”, lê-se no processo judicial, citado pelo jornal The Guardian.

Henrietta Lacks sempre viveu numa família pobre. O trisavô tinha sido escravo e Henrietta cresceu com o avô numa fazenda de tabaco, separada dos irmãos depois da morte da mãe. Apesar dos grandes avanços científicos que as células HeLa proporcionaram, muitos dos seus familiares nunca tiveram sequer seguro de saúde, destaca o jornal New York Times no obituário de Lacks.

George Gey, o médico que descobriu o potencial das células HeLa, nunca deu o devido crédito à afrodescendente e chegou mesmo a dizer que as células pertenciam a uma Helen Lane. Só depois da sua morte, em 1970, os colegas publicaram um artigo científico com o nome de Henrietta Lacks. Mas a informação continuou na comunidade científica, longe do conhecimento da família.

A família só soube que as células de Henrietta Lacks continuavam vivas em 1973 e por acaso: pelo marido de uma amiga de uma nora de Henrietta, de acordo com o obituário do New York Times. Ele fazia investigação em cancro e, claro, conhecia as células HeLa. Notando que a amiga da mulher tinha de sobrenome Lacks, perguntou-lhe se conhecia Henrietta Lacks. Nessa mesma noite, Bobette contou ao marido Lawrence Lacks, filho mais velho de Henrietta.

Em 2010, o livro “A vida imortal de Henrietta Lacks” (publicado em Portugal pela Casa das Letras), da autora Rebecca Skloot, deu a conhecer ao mundo a história por trás das células “imortais”, incluindo todas as questões relacionadas com racismo e falta de ética científica que envolveram o processo. Mais tarde, em 2017, o livro foi transformado em filme, pela HBO, contando com Oprah Winfrey, no papel de Deborah Lacks (filha de Henrietta) e Rose Byrne, como a escritora Rebecca Skloot.