Ao longo de 28 dias, células humanas cresceram a par de células de porco e deram origem a rins parcialmente humanos num embrião de porco. A equipa liderada por investigadores dos Institutos de Biomedicina e Saúde de Cantão (China) considera que se “abriu um caminho excitante para a medicina regenerativa e uma janela artificial para estudar o desenvolvimento renal humano”. Os resultados foram publicados na revista científica Cell Stem Cell.

Apesar de se ter demonstrado, pela primeira vez, que era possível criar órgãos com células humanas em porcos, os cientistas estão ainda longe de conseguir criar órgãos 100% humanos no animal e sem deixar que as células humanas se escapem para outras partes do organismo do animal. Neste caso, os rins eram compostos por 50 a 60% de células humanas e também foram encontradas algumas células humanas no cérebro (o que poderia levantar problemas éticos), na medula espinal, no coração e no fígado, mas não nos órgãos reprodutores.

Se vier a mostrar-se possível criar órgãos totalmente humanos noutros mamíferos, isso poderia permitir que as células do doente dessem origem ao órgão a transplantar, minimizando o risco de haver rejeição do transplante. “Os animais poderiam servir como incubadoras de hipotéticos órgãos feitos à medida, criados a partir das próprias células do doente, evitando assim os riscos de rejeição”, comentou, sem ter participado no estudo, Rafael Matesanz, fundador da Organização Nacional de Transplantes espanhola, ao Science Media Centre Espanha (SMC Espanha).

Células manipuladas para criar uma quimera

Para criar órgãos humanos em porcos foi preciso introduzir células estaminais pluripotentes humanas no embrião de porco. Estas células podem, potencialmente, dar origem a qualquer outro tipo de células, que, por sua vez, originam tecidos e órgãos. Mas, no caso particular, só isso não chega, porque as células do embrião de porco sobrepõem-se e acabam por dominar o desenvolvimento.

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Assim, para conseguirem dar origem a um rim maioritariamente humano, os cientistas tiveram de manipular geneticamente os embriões de porco e ‘desligar’ alguns genes que continham as instruções para o desenvolvimento dos rins. Sem estes genes nas células do porco, mas com eles ativos nas células humanas, foram estas as instruções utilizadas. Já os pequenos terminais nervosos e os vasos sanguíneos continuaram a ser compostos maioritariamente por células de porco. Nestas condições, não seria possível usar este tipo de órgãos para transplante, destaca o jornal The Guardian.

Descobrimos que se criarmos um nicho no embrião de porco, então as células humanas vão, naturalmente, para esses espaços”, disse Zhen Dai, coordenador do estudo.

Os genes foram ‘desligados’ com a técnica CRISPR quando o embrião de porco não era mais do que uma célula. Depois, quando o embrião já era composto por um agregado de células parecido com uma amora, foram introduzidas as células humanas (nas quais se ‘desligou’ o processo de autodestruição). O passo final implicou a inseminação de porcas com estes embriões — 1.820 embriões em 13 porcas.

A gestação foi interrompida ao fim de 25 a 28 dias e, em cinco dos embriões, foram identificados os tais rins humanizados com o desenvolvimento normal para a idade — ou seja, as células humanas foram capazes de se organizar no espaço e formar o princípio de um rim, em vez de produzir apenas uma massa amorfa de células.

O rim que desenvolvemos não era um rim maduro, para isso teríamos de prolongar a gestação. É possível que outro tipo de barreiras técnicas dificultem a maturação, mas estamos a trabalhar nisso”, disse, citado pelo El Mundo, Miguel A. Esteban, investigador espanhol que trabalha no mesmo instituto chinês e que foi um dos autores da investigação. A equipa, que demorou cinco anos a desenvolver este projeto, está também a trabalhar na formação de órgãos em porcos, como o coração e o fígado.

Da prova de conceito ao transplante de órgãos há um longo caminho

Uma tecnologia como esta poderia trazer uma resposta à falta de órgãos para transplante. Mas até que estes órgãos humanos criados em porcos (ou em outros mamíferos) possam ser transplantados ainda faltarão muitos anos e terão de ser ultrapassados vários obstáculos, disse o investigador espanhol à Agência Sinc. Entre eles, impedir que as células humanas invadam outros órgãos, como os do sistema nervoso central ou do sistema reprodutor. Para isso, estão a trabalhar na modificação genética das células humanas, eliminando esses genes — mas também é preciso perceber se isso afeta o desenvolvimento do rim.

Outro obstáculo é conseguir um órgão composto totalmente por células humanas, o que implicaria que fosse feita uma maior manipulação genética dos embriões de porco. “Acho que seria possível, pois temos uma plataforma excecional para a manipulação genética destes animais”, disse Miguel A. Esteban.

Depois, é preciso perceber que outros requisitos são necessários para que o rim ou outro órgão humano se desenvolva totalmente e se apresente plenamente funcional — incluindo, como é que se sincroniza o desenvolvimento de células e órgãos que têm tempos diferentes no desenvolvimento embrionário de porcos e humanos. Para responder a estas questões é preciso prolongar a gestação, o que não é permitido em vários países por questões éticas, como no Reino Unido, Espanha ou Estados Unidos.

Rafael Matesanz, ao SMC Espanha, destacou também que será necessário ultrapassar a baixa eficiência da técnica: são poucos os embriões implantados que se desenvolvem — um número que permite a investigação, mas que inviabiliza a transplantação. Um obstáculo identificado pela equipa de Cantão: “A proporção de embriões de porcos que degeneram é elevada e será necessário avaliar se isso está parcialmente relacionado com o quimerismo ou com quaisquer outros aspetos do procedimento de inseminação”.

Mesmo sem conseguir proporcionar órgãos para transplante — por enquanto —, o trabalho de investigação da equipa chinesa permite estudar o desenvolvimento humano (e dos órgãos humanos). “Por exemplo, podemos seguir as células humanas que injetámos e manipulá-las para estudar doenças e ver como se formam as linhagens celulares”, acrescentou Esteban.