Um documento histórico recentemente descoberto no Arquivo Apostólico do Vaticano mostra que o Papa Pio XII poderia ter mais conhecimento do que se supunha até hoje acerca do extermínio de judeus pela Alemanha nazi.

A descoberta resulta do trabalho de Giovanni Coco, um dos investigadores do arquivo do Vaticano que mais se tem dedicado a este período histórico — e foi divulgada este domingo no jornal italiano Corriere della Sera.

Em 2020, o Papa Francisco determinou a abertura dos arquivos do Vaticano que respeitam ao período da II Guerra Mundial, um ano depois de garantir publicamente que a Igreja “não tem medo da História” e que pretendia desclassificar aqueles documentos.

Durante décadas, o papel de Pio XII, que foi Papa entre 1939 e 1958, tem sido objeto de grande especulação e polémica dentro e fora da Igreja Católica. Pio XII, que liderou a Igreja durante o período da II Guerra Mundial, tem sido historicamente acusado de ter ficado em silêncio perante os horrores do Holocausto, não condenando explicitamente o extermínio dos judeus por parte da Alemanha nazi.

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Vaticano abre arquivos sobre Segunda Guerra Mundial na segunda-feira

Pelo contrário, dentro da Igreja Católica houve um grande esforço para apresentar argumentos contrários em defesa do pontífice, argumentando que Pio XII não condenou explicitamente o Holocausto por só ter tido conhecimento da dimensão da tragédia mais tarde — e sublinhando também que o Papa contribuiu para salvar cerca de 15 mil judeus, ordenando a abertura de mosteiros e igrejas para os esconder.

A abertura dos arquivos sobre este período histórico, em março de 2020, deu origem a uma profusão de estudos, livros e publicações sobre o pontificado de Pio XII e a sua relação com a Alemanha nazi.

Agora, uma carta com data de 14 de dezembro de 1942 parece trazer a certeza de que Pio XII estava perfeitamente informado da dimensão do Holocausto. Trata-se de uma carta enviada pelo padre jesuíta alemão Lothar König, que era anti-nazi, ao secretário pessoal de Pio XII, também ele um padre alemão, Robert Leiber.

Na carta, em papel já amarelecido pelo tempo, lê-se que no “alto forno” situado perto de Rava Rus’ka — ou seja, o campo de concentração de Bełżec, na Polónia ocupada pela Alemanha nazi, onde terão morrido perto de meio milhão de pessoas — “todos os dias morrem cerca de 6 mil homens, especialmente polacos e judeus”.

Segundo o Corriere della Sera, o campo de concentração é depois descrito em todo o seu horror na carta enviada por König ao secretário pessoal de Pio XII. A carta faz também uma referência breve ao campo de concentração de Auschwitz — referindo-se a um outro documento que não foi ainda encontrado nos arquivos.

Em entrevista à revista do Corriere della Sera, o investigador Giovanni Coco sublinhou que esta carta tem de ser enquadrada num contexto mais ampla, representando “a única prova” encontrada até agora “de uma correspondência que teve de ser alimentada e prolongada no tempo”. Significa, na perspetiva do investigador, que havia um fluxo de informação sobre o Holocausto a chegar em tempo real à Santa Sé.

“Durante meio século, discutimos sobre documentos e fontes indiretas. Agora, temos fontes diretas, e possivelmente vão surgir outras. Estamos a tentar torná-las o mais acessíveis possível a toda a gente, para que o terrível período em que Pio XII conduziu a Igreja possa ser compreendido”, disse Coco. “Tudo tem de ser conhecido, sem medos nem preconceitos.”

Além da carta, foi também encontrado no arquivo um punhal ornamentado com a suástica nazi. Este punhal teria sido descoberto no apartamento pontifício pelo sucessor de Pio XII, João XXIII, quando se instalou. O novo Papa terá pedido explicações sobre o objeto ao arcebispo Angelo Dell’Acqua, um antigo responsável da Secretaria de Estado que tinha trabalhado com Pio XII.

Angelo Dell’Acqua procurou explicações junto de uma freira alemã, Pascalina Lehnert, que tinha trabalhado como governanta de Pio XII durante décadas. Segundo o jornal Crux, foi Lehnert quem coordenou, em nome de Pio XII, os esforços do Vaticano para ajudar judeus que fugiam à perseguição, escondendo-se em instalações da Igreja Católica.

A explicação de Lehnert ao arcebispo Dell’Acqua terá sido a de que um agente das SS, a polícia secreta da Alemanha nazi, que teria levado o punhal para uma audiência papal. O agente estaria a planear atacar o Papa Pio XII com o punhal, mas arrependeu-se e ofereceu a arma ao Papa como sinal de arrependimento.

As mais recentes descobertas, que estão incluídas numa nova edição de estudos científicos sobre o papado de Pio XII publicada esta segunda-feira pelo Vaticano, acabam com as dúvidas que ainda pudesse haver sobre se o Papa sabia ou não da dimensão do Holocausto. Ainda assim, Pio XII poderia ter razões para ter evitado uma condenação mais explícita da Alemanha nazi, defende o investigador por trás da nova descoberta.

Segundo disse Coco ao Corriere della Sera, uma condenação explícita poderia levar a Alemanha nazi a lançar represálias contra os católicos na Polónia. “Significaria cortar relações com os bispos de uma comunidade que já estava sob o domínio nazi”, disse o investigador, que admitiu também que a existência de algum antissemitismo no Vaticano poderá ajudar a explicar o silêncio de Pio XII.