Sousa Cintra entrava no balneário de charuto na mão para dar uma última força aos jogadores do Sporting antes da segunda mão dos quartos da Taça UEFA frente ao Bolonha após o empate em Itália a um. “Careca, não precisas de moral nenhuma, isso sou eu que dou. Tu tens de mostrar a estes gajos que és melhor do que eles, que não és nenhuma m****. O mundo todo está a olhar para ti, vai ser o jogo da tua vida”, atirou para o brasileiro que ia começar no banco (e que um dia foi descrito de forma manifestamente exagerada como uma mistura entre Eusébio e Pelé). A seguir, o cumprimento ao treinador. “Grande Marinho pá, então como é que está a equipa?”, disse com um entusiasmo que se espalhava. “Vai ser se Deus quiser”, respondia o técnico. “Careca, diz aqui ao Marinho que vais partir isto tudo hoje se faz favor”, continuava o líder leonino. “Se Deus quiser vai ser, se Deus quiser. Vamos lá, uma boa atuação”, ia prometendo o treinador.

[Leia aqui a entrevista de Marinho Peres ao Observador em setembro de 2016]

Marinho Peres. “O Figo era meio gordinho”

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Marinho Peres era assim. Por mais euforia ou depressão que houvesse no balneário, tinha sempre um estilo muito tranquilo de abordar todas as situações. De sorriso fácil, com bom humor, a tratar os jogadores como gostava de ser tratado quando era um zagueiro de tal forma evoluído que mereceu ser titular da seleção do Brasil e rumar ao Barcelona numa passagem de apenas um ano por questões burocráticas, sempre com uma palavra a mais para quem estava à sua volta como amigo, adversário ou profissional. As saídas dos clubes até o podiam de quando em vez apanhar de surpresa mas nem por isso perdia aquela maneira de ser que deixava saudades por onde quer que passasse. Marinho Peres morreu esta segunda-feira, aos 76 anos.

Nascido em Sorocaba, um município do interior de São Paulo, o brasileiro começou por dar nas vistas no São Bento, clube da terra, antes de passar por Portuguesa e Santos. Foi do antigo clube de Pelé que se transferiu para o Barcelona, onde jogou apenas em 1974/75 numa fase em que era presença constante nas opções da seleção canarinha (foi convocado e sempre titular no Campeonato do Mundo de 1974, onde envergou a braçadeira de capitão). Quando deixou a Catalunha, voltou ao Brasil para não mais sair enquanto jogador, com clubes como Internacional, Galícia, Palmeiras e América. Ao invés, a carreira como treinador teria vários capítulos no estrangeiro após um início no América e no São Bento que teve uma passagem como adjunto de Telê Santana na Arábia Saudita, quando fez parte da equipa técnica do Al Ahli de Jeddah.

Antes, deixara também para trás uma carreira académica. Por ser médico, o pai queria que Marinho Peres seguisse medicina na faculdade mas o filho preferiu formar-se em economia, terminando a licenciatura numa das melhores universidade de São Paulo. Ainda assim, o “doutoramento” acabaria por chegar apenas através de um futebol onde ficou como um “economista das emoções” que não era indiferente a ninguém.

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Em 1986, aventurou-se pela primeira vez a solo como técnico fora do Brasil e com sucesso, conduzindo o V. Guimarães ao terceiro lugar do Campeonato com corresponde apuramento para as provas europeias numa formação que tinha o goleador Paulinho Cascavel. Na época seguinte, mais um capítulo em duas partes com objetivos cumpridos: assinou pelo Belenenses, acabou também em terceiro no Campeonato, teve uma fugaz passagem pelo Santos e voltou para conquistar a Taça de Portugal de 1989, ficando ainda como o treinador que conseguiu levar o conjunto da cruz de Cristo à vitória frente ao Barça (mais tarde ainda teria mais três épocas pelos azuis do Restelo, ficando como um dos principais técnicos do clube). Ainda orientou o Guarani mas o regresso a Portugal parecia uma questão de tempo. Não muito: em 1991 assinou pelo Sporting.

Após fazer uma digressão de final de época com a equipa a Angola em maio/junho de 1990, para preparar a temporada seguinte, Marinho Peres arrancou o Campeonato com oito vitórias consecutivas (e 23-4 em golos) mas acabou de novo na terceira posição num ano marcado pela chegada às meias-finais da Taça UEFA, onde só caiu na segunda mão em Milão com o Inter de Andreas Brehme, Lotthar Matthaus e Jürgen Klinsmann. Em 1991/92 o caminho foi mais difícil e acabou por sair em março de 1992, voltando depois a Guimarães e ao Restelo já sem tanto sucesso além de somar pelo meio uma curta experiência no Marítimo. Até 2009, quando acabou a carreira no ASA, passou por União São João, Botafogo, São Bento, Portuguesa, Juventude ou Santos, além de uma única aventura em seleções no comando do modesto El Salvador.

“Os Órgãos Sociais do Clube de Futebol “Os Belenenses” tomaram conhecimento do falecimento de Marinho Peres, aos 76 anos, treinador do clube nas épocas 1987/88, 1988/89, 2000/01, 2001/02 e 2002/03, totalizando 141 jogos no seu comando técnico, o Homem que conduziu os azuis da Cruz de Cristo à conquista da Taça de Portugal em 1989 e ao terceiro lugar no Campeonato em 1987/88, tendo orientado o Belenenses na célebre vitória sobre o Barcelona em compromisso da Taça UEFA. Em 2019, foi eleito pelos sócios do clube o treinador do Onze do Centenário. Neste momento difícil e em nome de toda a Família Belenense, os Órgãos Sociais endereçam a todos os seus familiares e amigos as mais sentidas condolências. Até sempre, Seu Marinho!”, escreveu o Belenenses após o anúncio da morte pela mulher de Marinho Peres.