Calhou que o 25º aniversário do Bloco de Esquerda acontecesse no dia em que Paulo Núncio trouxe a discussão sobre a despenalização sobre o aborto para a campanha eleitoral. E foi essa uma das “vitórias” da esquerda de que Mariana Mortágua escolheu para ilustrar a importância do voto no partido — com avisos contra as tentações de optar pelo voto útil, e que podem trazer “arrependimentos” no futuro.

Num comício em Torres Novas, no distrito de Santarém (onde o Bloco perdeu a sua única deputada nas últimas eleições”), Mortágua começou por declarar que o Bloco “alterou o mapa político português”, introduzindo nele uma “esquerda moderna” que salvou o socialismo “das suas caricaturas”. Era preciso uma nova política sem “condescendência nenhuma com as experiências autoritárias de Leste”, disse, numa farpa ao PCP.

Depois, passou em revista as “vitórias” destes 25 anos. Começou pela vitória da “dignidade” e da “esperança” em 2015, “quando a geringonça abriu a porta” de saída dos tempos de troika e de uma política que o PS “queria manter”, prevendo e prometendo facilitações de despedimentos e congelamento de pensões. “O programa de governo não foi o do PS, foi imposto ao PS. Essas são as vitórias do Bloco”, recordou, lembrando conquistas da geringonça como a redução das propinas ou do preços dos passes ou a regularização de precários no Estado. “Estas são as vitórias da esquerda”. Uma memória que o Bloco quer agora recuperar, numa altura em que reclama um novo acordo do PS — sempre argumentando que quanto mais força tiver mais medidas conseguirá impor aos socialistas.

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Depois, passou às vitórias das suas causas. Deu três exemplos: o primeiro foi a despenalização do consumo de drogas (lembrando o papel de Jorge Sampaio e Almeida Santos, que “abriram caminhos” para essa causa), tema em que “a direita foi derrotada, não voltou a tentar, o país venceu com a força do Bloco”. Depois, a mudança do estatuto legal das pessoas LGBT — “conseguimos igualdade no casamento e acabar com discriminação da adoção”, com a mesma conclusão: “Derrotámos a direita”, repetiu, acrescentando que nessa altura algumas bancadas demonstravam um conservadorismo medieval parecido com as “boçalidades” atuais do Chega.

Conclusão: “Aqui estamos para derrotar a direita de agora”, atira. “Não permitimos cultura do ódio. Em Portugal ninguém viverá com medo, essa é uma garantia”, dispara. Era a ponte para passar ao tema que dominou o dia, e que é uma causa de fundo do Bloco: a “vitória histórica” das mulheres na despenalização do aborto.

“Vencemos em 2007, a direita foi derrotada”, repetiu. E quis voltar a esta questão porque a campanha, disse, mostra como esta é uma conquista “ameaçada”, apesar de ser uma vitória “completa” — porque é “tão evidente e indesmentível” que a direita “não se atreve a propor a alteração da lei”.

“Até a extrema-direita capitula e reconhece que a esquerda tinha razão. Vejam o poder desta vitória”, atirou, em referência à posição do Chega, que também não quer alterar a lei que despenaliza o aborto. Ainda assim, frisou, a aplicação da lei enfrenta “enormes dificuldades” graças ao estado do SNS, um “boicote quotidiano” no acesso das mulheres ao aborto — lembrando que o Bloco quer aumentar o prazo em que podem recorrer a ele para 12 semanas.

Neste ponto, o PS não passou incólume: “Manuel Pizarro sai como um ministro que ofendeu os direitos das mulheres ao não garantir um aborto livre e seguro”, atacou a bloquista, criticando a “hipocrisia” de quem celebra a lei mas “nada faz” para assegurar que o SNS cumpre o acesso a ela. “Nenhuma vitória é garantida para sempre”, avisou. “O voto no BE é a certeza de que não passarão”. É mais um argumento que o Bloco testa para tentar recolher mais votos, desta vez com a ajuda do vice-presidente do CDS.

No remate do comício, a coordenadora do Bloco teve ainda tempo para criticar a “velha conversa do voto útil”, acrescentando ainda mais uma variável ao seu apelo ao voto no Bloco. “Se os apelos fossem escritos em livro, o título seria ‘a história de um arrependimento’”. Como o fundador Fernando Rosas já fizera na noite desta terça-feira, recordou a concentração de votos no tempo de José Sócrates, que, recordou, congelou pela primeira vez a carreira dos professores; e depois em PSD e CDS, que fizeram “promessas falsas” sobre os cortes que depois puseram em prática no tempo da troika. Já em 2015, nas semanas pré-geringonça, Carlos César (presidente do PS) dizia que “votar no Jerónimo e na Catarina era um alívio para Passos e Portas” — uma “falácia”, que acabou desmentida pela geringonça, atirou.

Assim chegou a 2022 — “dessa história já sabemos o final”. “Falo a quem sabe o que se passou e não quer que se repita, quem quer políticas consistentes”, apelou, tentando dirigir-se aos potenciais eleitores de esquerda que se arrependeram de votar útil no PS e entregar a maioria absoluta a António Costa. Mortágua diz que o voto no BE é o que “abre caminhos à esquerda”. O argumento fará parte do seu guião até 10 de março.