Quarta-feira foi dia de história. Em Dublin, a pouco mais de 1.800 quilómetros de Bérgamo, cidade da Lombardia com cerca de 120 mil habitantes, a população teve motivos para sorrir. Quatro anos depois. Foi em 2020 que, há semelhança de todo o planeta, Bérgamo foi fustigada pela Covid-19. O vírus causou danos e perdas irreparáveis na cidade, matando milhares de pessoas. Conta quem por lá passa que, atualmente, é quase impossível encontrar algum jovem que não tenha perdido um dos avós. E tudo foi potenciado devido… ao futebol.

A 19 de fevereiro de 2020, a Atalanta estreou-se na fase a eliminar da Liga dos Campeões, defrontando, na ocasião, os espanhóis do Valencia. A história já estava feita, dado que a equipa de Bérgamo conseguiu passar do pote 4 ao top 16 europeu. Devido a imposição da UEFA, a primeira mão teve de ser disputada em Milão, no mítico San Siro. Essa alteração de estádio levou à movimentação de cerca de 40 mil adeptos da Atalanta, numa fase em que o vírus se estava a propagar rapidamente pelo território transalpino sem que ninguém soubesse sequer que existia.

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No que ao futebol diz respeito, o grande obreiro do feito inédito dessa temporada chama-se Gian Piero Gasperini. Atualmente com 66 anos, a história do treinador cruza-se e está paralelamente ligada à trajetória do clube do norte de Itália. Começaram como desconhecidos, tiveram de crescer de forma paulatina e o sucesso demorou a aparecer. O italiano aterrou em Bérgamo em 2016 e, deste então, criou uma das principais equipas italianas com um orçamento modesto.

Gasperini chegou à Atalanta praticamente como um desconhecido. Foi jogador de futebol, tendo começado nas camadas jovens da Juventus. Em Turim cruzou-se com nomes como Paolo Rossi e Sergio Brio, e sagrou-se vice-campeão nacional de juniores em 1976. Seguiu-se um empréstimo ao Reggiana e a venda ao Palermo, em 1978. Nos rosanero chegou à final da Taça de Itália, mas perdeu frente à Juventus.

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Seguiram-se as divisões inferiores do futebol italiano, atuando ao serviço de Cavese e Pistoiese. Em 1987 teve a oportunidade de chegar à Serie A, pela mão do Pescara. Na partida de estreia, frente ao Pisa, marcou o seu primeiro golo e foi fundamental na vitória da sua nova equipa (2-1). Em 1990 rumou ao Salernitana e, em 1993, pendurou as chuteiras, depois de dois anos no Vis Pesaro. A carreira como futebolista foi modesta, algo que viria a mudar quando ocupou o principal lugar no banco de suplentes.

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No ano seguinte regressou à Juventus, começando a carreira de treinador na equipa de Sub-14. Dois anos depois ingressou nos Sub-17 e, em 1998, assumiu o comando da equipa de Sub-20. Em 2003 saiu novamente de Turim, desta feita para embarcar no Crotone, que atuava na Serie C (Terceira Divisão). Logo na primeira época, Gasperini garantiu a promoção ao segundo escalão do futebol italiano. Esteve mais duas épocas nos rossoblu até ser despedido, em 2004/05, mas regressou logo a seguir.

Em 2006 assumiu o projeto do Génova e, novamente no primeiro ano, colocou os grifone na Serie A. Na estreia na Serie A italiana, Gasperini voltou a dar cartas, garantiu a manutenção e, no ano seguinte, colocou o Génova na Liga Europa, alcançando a melhor classificação de sempre do clube nos últimos 19 anos (quinto lugar). Nessa equipa atuavam nomes como Diego Milito, Thiago Motta ou Domenico Criscito, numa equipa que ficou conhecida pelo 3x4x3 e um estilo de jogo ofensivo, que foi elogiado em todo o país, incluindo por José Mourinho que, na época, se sagrou campeão no Inter. Em declarações aos jornalistas o Special One assegurou que a equipa que mais dificuldades causou ao seu conjunto foi o Génova.

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Em 2010/11, a equipa que joga no mítico Luigi Ferraris reforçou-se, contratando Luca Toni, Miguel Veloso ou Rafinha, mas o início de época não foi fácil. Ao cabo de dez jornadas, o Génova tinha apenas 11 pontos, indicadores que levaram Gasperini a ser despedido. Seguiu-se o… super Inter. Os elogios de Mourinho certamente foram tidos em conta pelos dirigentes nerazzurri mas nem tudo foi um mar de rosas. A 24 de junho de 2011 foi oficializado no cargo, a 21 de setembro foi despedido. Cinco jogos sem vencer, com quatro derrotas e um empate, levaram ao trágico final, ao cabo de 89 dias de ligação.

Cerca de um ano depois, Gian Piero Gasperini ingressou no Palermo, voltando a uma casa que conhecia bem. O percurso voltou a ser sombrio e, cerca de cinco meses depois, foi despedido, curiosamente após ter perdido uma partida em casa frente à… Atalanta (2-1). Poucos dias depois voltou a ser contratado pelo Palermo, mas em maio foi novamente despedido. Em 2013/14 regressou ao Génova, onde esteve durante três anos. Esses três anos foram fundamentais para se cimentar na elite italiana e dar o passo seguinte.

Em junho de 2016 foi oficializado na Atalanta. À semelhança do que vinha acontecendo na sua carreira, Gasperini esteve à beira da demissão ainda no início da temporada, depois de ter conquistado apenas três pontos nas primeiras cinco partidas. Mas, a partir daí, reverteu a situação com a aposta em jovens jogadores, como Roberto Gagliardini, Franck Kessié ou Andrea Conti, e a prestação da equipa melhorou significativamente. Com as vendas dos jogadores, a situação financeira da equipa de Bérgamo melhorou e o clube conseguiu comprar o Estádio Atleti Azzurri d’Italia à Câmara local em 2017, tornando-se apenas no quarto clube da Serie a ser dono do seu reduto, que se encontra, atualmente, a ser reformulado.

Em 2017, os orobici apuraram-se para as competições europeias depois de 26 anos de ausência, terminando essa edição da Serie A no quarto lugar, quebrando o recorde do clube, que datava de… 1948. Para além desse feito, a Atalanta de Gasperini bateu o seu recorde de pontos (72) e de vitórias (21) na elite do futebol transalpino. A boa época levou vários jogadores a serem convocados para as suas seleções nacionais, alguns pela primeira vez. Seguiu-se um sétimo lugar e nova presença na Liga Europa. Na segunda prova europeia, a Atalanta voltou a fazer furor, vencendo o grupo à frente de Lyon, Everton e Apollon Limassol, sem derrotas e com 14 pontos. Nos oitavos de final, o B. Dortmund eliminou os italianos, mas teve sérias dificuldades (4-3 no agregado). Essa temporada ficou ainda marcada pelo apuramento para as meias-finais da Taça de Itália, pela primeira vez desde 1996, e o sétimo lugar da Liga.

Ao contrário dos anos anteriores, a temporada começou com um revés nas pré-eliminatórias da Liga Europa. Depois de ter eliminado o Sarajevo e o Hapoel Haifa, a Atalanta caiu no playoff, nas grandes penalidades, frente ao Copenhaga. O ambiente negro estendeu-se à Serie A, onde os orobici somaram apenas seis pontos nos primeiros oito jogos. Contudo, a recuperação veio com 41 pontos na segunda volta, o melhor ataque do Campeonato (77 golos) e o terceiro posto, com 69 pontos. Pela primeira vez na história, a Atalanta ia disputar a Liga dos Campeões.

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No Grupo C da prova milionária, com Manchester City, Shakhtar Donetsk e Dínamo Zagreb, os italianos saltaram do pote 4… para os oitavos de final, mesmo depois de terem somado apenas um ponto em quatro jornadas. Devido às obras de remodelação no seu Estádio, a Atalanta chegou a acordo com a UEFA para disputar os seus jogos em San Siro. Pelo meio, o sucesso estendeu-se à Serie A, com a equipa de Gasperini a golear o AC Milan (5-0) e a vencer o Torino fora de portas (7-0), naquela que foi a sua maior vitória de sempre na Liga italiana. Em março, os orobici eliminaram o Valencia e avançaram para os quartos de final, onde viriam a ser eliminados, em Lisboa, pelo PSG. Seguiu-se a interrupção dos Campeonatos e o foco de Bérgamo deixou de ser o futebol. No regresso, a Atalanta voltou a terminar no pódio, a qualificar-se para a Champions e a bater mais recordes: pontos (78), golos marcados (98) e vitórias consecutivas (9).

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Em 2020/21, a Atalanta apurou-se novamente para os oitavos de final da Liga dos Campeões, desta feita num grupo com Liverpool, Ajax e Midtjylland, três campeões dos seus países. Ainda assim, a meio da época, Gasperini perdeu o capitão Papu Gómez, que rumou ao Sevilha. Na fase a eliminar, o Real Madrid eliminou a Atalanta (4-1 no agregado). No final da época, os orobici voltaram a sorrir, apurando-se pela terceira vez consecutiva para a Champions e chegando à final da Taça de Itália, onde perderam para a Juventus (2-1). Fruto da boa temporada, 12 jogadores foram convocados para o Europeu e a Copa América desse ano.

Contudo, em 2021/22, a Atalanta começou a perder o gás. Terceira classificada na Liga dos Campeões, num grupo com Manchester United, Villarreal e Young Boys, a equipa de Gasperini caiu nos quartos de final da Liga Europa, diante do Leipzig (3-1 no agregado). Na Serie A, os orobici não conseguiram terminar acima do oitavo lugar e, pela primeira vez na era-Gasperini, ficaram fora das competições europeias. Apesar do fracasso, o treinador manteve-se no clube e, no ano seguinte, terminou em quinto lugar, apurando-se diretamente para a fase de grupos da Liga Europa. Já esta época, a Atalanta fez a contratação mais cara da sua história (El Bilal Touré) e conquistou a Liga Europa, vencendo um grande troféu pela primeira vez desde 1963. A equipa voltou a apurar-se para a final da Taça, mas perdeu com a Juventus (1-0).

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Como já vimos, desde cedo que Gian Piero Gasperini começou a implementar o seu 3x4x3, caracterizado pelo domínio da posse de bola e o estilo ofensivo. Para além disso, a sua formação promove a versatilidade dos médios e da linha de ataque que, sem bola, funciona como primeira linha de pressão. A Atalanta caracteriza-se ainda pelo elevado número de golos que marca, contrariando aquela que é a norma e a história do futebol italiano. Pela negativa, o facto de utilizar a linha defensiva subida no terreno permite ao adversário ter espaço para aproveitar.

Gasperini é assumidamente fã do futebol neerlandês e já confessou, em diversas entrevistas, que se inspirou nos Países Baixos. O Ajax de Louis van Gaal é um desses exemplos, tendo permitido ao treinador aproveitar o futebol vertiginoso, sem medo de atacar e forte na recuperação de bola. Também Arrigo Sacchi é uma das grandes inspirações de Gasperini, que utilizou o antigo treinador para fortalecer fisicamente as suas equipas e compactar o seu sistema.